sábado, 20 de fevereiro de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – o velho valoriza apenas a sua convivência com Nancy; Péricles experimenta o ciúme; um nome que nos remete à antiga Grécia; um jovem “velho amigo” da mulher; em alguns casos, quanto mais velho é o corpo, mais moço é o espírito


Em “Dios se lo pague” assistimos ao encontro do velho com Péricles durante a madrugada. Ele chegou à mansão e flagrou Nancy e o jovem acomodados na grande sala... Os registros que seguem nesta e nas próximas postagens apresentam o essencial da conversa que tiveram conforme o enredo da peça. Evidentemente a produção cinematográfica fez a adaptação destacando as características principais de cada personagem sem se ater demasiadamente ao texto para o teatro.
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Péricles levantou-se e permaneceu calado enquanto o velho caminhava com dignidade e a passos firmes ao encontro de sua mulher. Ele a cumprimentou com um “boa noite”. Ela respondeu com um “bom dia” em tom de gracejo. Ele perguntou se a companheira fazia mal juízo a seu respeito pelo adiantado da hora. Nancy disse que não e perguntou-lhe o mesmo.
O velho olhou para Péricles e respondeu que não fazia nenhuma mal juízo a respeito dela... A mulher quis saber o que dera nele para lhe aprontar a maldade de obrigá-la a sentir saudades. Nesse mesmo instante o jovem Péricles não conseguiu esconder o ciúme.
Mas então Nancy sentira saudades? O velho quis saber... Ela respondeu que não sabia bem... Disse que pensou muito nele e, como nunca sabia onde ele estava, pensou apenas nele porque não tinha como pensar sobre os lugares onde estivera. O velho respondeu que quando não estava em casa só podia estar nas ruas em contato com os que passavam por elas. Nancy mostrou-se espantada com a resposta e ele confirmou garantindo que os transeuntes eram seus melhores amigos. Ela sorriu achando que adivinhara uma piada, depois emendou que ele não era amigo de ninguém.
Também essa conclusão de Nancy mereceu nova observação enigmática do velho que disse que era amigo da multidão e que “a multidão é tudo!”. Ela quis saber se apenas a multidão lhe bastava por amizade... Ele respondeu que tinha muita consideração pela multidão e que, para ele, no mundo só havia a “multidão e Nancy”.
Certamente envaidecida, a mulher acrescentou que além da “multidão e dela mesma” havia o seu companheiro velho. Ele emendou que, mais que isso, além dos dois, não havia mais ninguém, e que, perto ou distante, ninguém mais interessava à existência de ambos...
Essas palavras incomodaram o Péricles e, talvez percebendo isso, o velho prosseguiu afirmando que se ria da “gente chic” que por ele passava nas ruas... Será que não sabiam que “já estavam mortas”?
Nancy olhou para o jovem que a tudo ouvia com perplexidade e pediu-lhe que se sentasse. Péricles agradeceu e sentou-se. O velho arregalou os olhos e perguntou-lhe se era “Péricles” mesmo. O moço levantou-se novamente para confirmar, “sim! Péricles!”.
O dono da casa mostrou-se receptivo e fez questão de dizer-lhe que estava encantado por conhecê-lo, pois “de nome” já lhe era muito familiar. Péricles perguntou “de onde” já teria ouvido falar a seu respeito... O velho respondeu que “da Grécia”.
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Percebemos que a interação do velho é provocativa. Ele encurrala o jovem com sua ironia. Faz referência ao Péricles da antiga Grécia e percebe que ele não tem conteúdo a altura de um diálogo filosófico.
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Péricles arriscou dizer que o velho só podia estar enganado... Grécia? De modo algum!
Nancy interveio dizendo ao velho que queria apresentar-lhe o rapaz, um amigo de infância (em “Dios se lo pague” ela diz se tratar de um parente; posteriormente Péricles mentiu ao velho dizendo que era irmão de Nancy)... Ele adotou uma postura de admiração: “Oh!”... “É então um velho amigo de minha mulher! A infância já está tão longe...”.
Evidentemente o moço levou em consideração a improvisação de Nancy e principiou um comentário referindo-se à “infância tão longe” salientando que aquela observação cabia perfeitamente ao velho que a fizera... Aconteceu que este o interrompeu dizendo que tinham “a mesma idade” e que se lembrava da própria infância assim como certamente o seu interlocutor lembrava-se da sua. Nancy quis entender e perguntou...
O velho respondeu que ela já sabia... Acrescentou que em alguns casos “quanto mais velho é o corpo, mais moço é o espírito. Neste ponto Péricles ousou interromper com um “talvez”... O outro redarguiu ao afirmar com convicção que “ser moço é ser forte” e que ele mesmo era mais forte do que o jovem ”amigo de infância” de sua esposa”.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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