domingo, 14 de fevereiro de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – fragmentos de cartas de D. Afonso do Congo; de 1517 a D. Manuel solicitando autorização para a aquisição de navio dado que os do reino aliado eram espoliados em São Tomé; de 1526 e 1540 a D. João III dando a entender que o aliado português deixava a desejar na fiscalização dos mal intencionados que chegavam ao reino africano; abandono e atentado contra a vida do rei do Congo


Ainda em relação à condição de inferioridade e de constantes solicitações e queixas do mani cristão africano expostas em suas cartas ao rei de Portugal, o livro cita o documento de 26 de
maio de 1517 em que D. Afonso I do Congo consultava D. Manuel e pedia-lhe “permissão para comprar um navio destinado a seu serviço”... O caso é que, como sabemos, as embarcações enviadas desde Portugal com destino ao Congo eram barradas na ilha de São Tomé e tinham as mercadorias espoliadas. Na mesma carta percebemos que o rei do Congo já antevia resposta negativa e por isso acrescentava a observação: “E caso que não, faça-me mercê de um alvará que todos os navios que a meu reino vierem possa meter certas peças (escravos) sem delas pagar direitos”.
De fato, D. Manuel não se sensibilizou nem mesmo com o pedido reiterado por seu aliado africano um mês depois... Não só negou como deu a entender que não podia (ou não queria) mensurar a gravidade do caso exposto, e respondeu que “o aliado sempre podia contar com todos os navios de Portugal”.
Já em carta de 6 de junho de 1526 ao rei D. João III, D. Afonso I do Congo chamava a atenção para a gravidade da situação de seu reino que, ao que tudo indicava, se encaminhava para triste fracasso perante:

                   “A muita soltura que vossos feitores e oficiais dão aos homens e mercadores de virem a este reino assentar com lojas, mercadorias e coisas muito por nós defesas, as quais espalham por nossos reino e senhorios em tanta abundância que muitos vassalos que tínhamos à nossa observância se levantam dela, por terem as coisas em mais avanço que nós”...
                   “E não havemos este dano por tamanho como é que os ditos mercadores levam cada dia nossos naturais filhos da terra e filhos de nossos fidalgos e vassalos e nossos parentes porque os ladrões e homens de má consciência os furtam com desejo de haver assim as coisas e mercadorias deste reino que são desejosos, as furta e lhes trazem a vender, em tanta maneira Senhor é esta corrupção e devassidade que nossa terra se despovoa toda, o que Vossa Alteza não deve haver por bem nem seu serviço”.

Estava claro que muitos portugueses se aventuravam pelas terras africanas e, sem qualquer fiscalização oficial, se envolviam em negócios próprios do comércio “desleal”... O reino se esfacelava, os súditos deixavam de prestar qualquer obediência, debandavam e ao mesmo tempo sofriam as mais diversas espoliações dos estrangeiros. D. Afonso I do Congo esperava que o aliado português interviesse de alguma maneira para, assim, evitar a completa deterioração política entre os dois países.
Em outra carta para D. João III, datada de 4 de dezembro de 1540, D. Afonso do Congo passou a ser mais incisivo em suas advertências e invocou que o monarca aliado português se atentasse para as responsabilidades que lhe cabiam... Fez isso salientando o peso do Congo para as rendas que Portugal auferia na região:

                   “todo o mais Guiné a uma parte, e só o Congo a outra, e veja-se de onde mais proveito aos seus tributos vêm, e achar-se-á só o Congo mais render que todos os mais rios juntos”.

A essa altura, o já envelhecido rei do Congo não tinha a menor ideia de que o aliado português avançava sobre outras terras, interessando-se pelas riquezas do Oriente, e que a época de ouro da amizade havia ficado para trás. A carta de 17 de dezembro do mesmo ano faz referência a esse tempo em que:

                   “os pilotos e capitães dos navios quando vinham a este reino nosso e porto tinham um bem ensinado cumprimento conosco, que tanto que o navio chegava nos enviavam recado se alguma coisa ao nosso serviço do dito navio cumpria, e agora nem quando vêm nem quando se vão a mim fazem, o que nos dá muita pena não sei se o causa a Vossa Alteza”.

Na mesma carta, D. Afonso do Congo relata um episódio durante as celebrações da Páscoa em que um religioso português tramou atentado contra ele... A antiga ideia de um reino cristão na África que proporcionasse recursos e apoio na luta contra os “infiéis” parecia ter definhado de vez:

                   “Já escrevemos a Vossa Alteza que o virtuoso padre frei Álvaro querendo dar fim a nossa vida ordenou em dia de Páscoa com sete ou oito homens brancos, estando nós ouvindo missa tirassem todos com as suas espingardas e que a honra da festa matassem nossa pessoa diante daquele verdadeiro salvador do mundo a quem prouve de tamanho perigo e tão miraculoso nosso meirinho mor, que junto com a pessoa estava e daí foi matar um homem e ferir dois outros e tudo isto não é outra coisa senão que eu morra para eles fazerem outro rei que quiser”.

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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