terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – a vida segue passando depois que os transeuntes se vão e nos concede a experiência; em nossa mente segue depositado o maior conforto a que podemos almejar; os livros e as inteligências opulentas têm muito a nos oferecer; complexa vivência de sugestionamentos com a esposa e confusa ideia de transformação da juventude numa maturidade sem vaidades

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/02/deus-lhe-pague-peca-de-joracy-camargo-o.html antes de ler esta postagem:

Barata sentiu que ganhara muito ao conhecer o velho... Percebeu que podia aprender com ele e que, apesar de o ter conhecido há pouco, avaliou que sua vida de pedinte podia mudar para a melhor. O outro até se dispunha a lhe proteger! Mas Barata viu que já era tarde e deu a entender que deviam se despedir.
O velho não concordou e respondeu que ainda era cedo. O Barata imaginou que o companheiro fosse mais pragmático e argumentou que àquela hora ninguém mais passaria por ali. Como não? A vida passa! Foi isso o que o outro postulou enquanto Barata salientou que “a vida não dá esmolas”.
(...)
Mais uma vez em tom professoral, o velho devolveu que a vida dá a grande esmola da experiência. Como explicar que um homem rico como ele desperdiçasse seu tempo nas ruas, e principalmente àquela hora? Poderia aproveitar o conforto de sua casa! Ele apontou para a própria cabeça e sentenciou que carregava nela o seu conforto.
Nem precisamos registrar que Barata continuava a se espantar a cada frase do camarada... Perguntou-lhe se não pensava em morrer... Ele respondeu que não pensava nem em morrer nem em viver, e era como se tivesse atingido a “perfeição do cavalo”, o mais feliz dos animais exatamente “porque não sabe que vai morrer”. O “aprendiz” sorriu e disse que, então, se lhe fosse permitida reencarnação, pediria para ser um cavalo... O velho o saudou com um “bravo!” e emendou que Menandro, poeta grego do século IV a.C dissera o mesmo.
(...)
Mas será possível que além de toda aquela filosofia o velho ainda sabia das artes ensinadas pelos livros clássicos? Sobre isso, ele revelou que sabia muito mais porque, quando não estava a pedir esmolas, passava o tempo em leituras. Fez questão de dizer que o ato de ler se equivale ao de esmolar, pois o leitor nada mais é do que um “pobre de espírito” que pede esmola às “inteligências opulentas”...
Barata começou a entender que o velho não se importava com o adiantado da hora porque gostava de uma boa conversa. E pelo menos neste ponto ele acertou, já que o outro manifestou que “conversar é o melhor prazer da vida” e por isso sentia pena dos mudos.
Barata deve ter balançado a cabeça, pois na sequência voltou a sugerir que deviam ir embora. Mais uma vez o velho se opôs... Por que deviam sair se estavam tão bem ali? Em resposta ouviu que já era muito tarde e que certamente sua o aguardava.
O velho adiantou que sua esposa nunca o esperava. Ele sim é que esperava por ela. Ela retornaria à escadaria da igreja? Ele teve de explicar que não era naquele sentido que “aguardava” a mulher. Falou ao Barata que a espera se dava no “tempo”, pois sua esposa era ainda muito jovem enquanto ele já era um velho... Aguardava em sua velhice o momento em que ela chegasse à maturidade para assim viverem felizes... Obviamente isso também causou espanto ao Barata que quis saber se aquela espera duraria muito tempo. A resposta pareceu-lhe ainda mais espantosa porque o companheiro garantiu que a vivência dela com ele proporcionaria o “envelhecimento”. Isso ocorreria tão logo mudasse a mentalidade... Para ele algo possível, já que “a velhice é contagiosa” e, uma vez “envelhecido o espírito da mulher”, sua “mocidade” não resistiria.
(...)
Barata ficou sabendo que a mulher do velho tinha apenas vinte e oito anos e que já “pensava como ele”. O mais surpreendente, conforme o próprio velho mendigo, era o ter conseguido conciliar “mulher e velhice”. Segundo ele, as mulheres agem como se pudessem ”viver eternamente”. Elas não têm o hábito de pensar sobre o amadurecimento, as rugas e cabelos brancos, enquanto vivem a plenitude da mocidade.
Seria o caso de saber se a mulher estava preparada para aquele complexo amadurecimento... O velho observou que certamente ela não estava conformada, mas aos poucos se sentia mais preparada para “receber os primeiros sinais da velhice”. Envelhecer não é castigo! Chegar à essa conclusão deve ser uma grande felicidade para qualquer pessoa. A realidade da velhice pode proporcionar a consciência para uma vida mais pura ou “menos impura”. Concluiu ainda que sua mulher tinha medo de “ser moça” em sua presença.
As surpresas não pararam por aí... Como aquele estranho homem conseguiu aquela proeza com a mulher que era tão diferente dele? O velho disse que o seu protegido não devia ficar assustado com aquilo porque há lugares no mundo desenvolvido onde se fabricam objetos que são reprodução de antigas raridades, e com a mesma precisão e perfeição.
Como podia comparar a confecção de objetos à transformação da personalidade da própria esposa? Sobre isso, ele respondeu que as mulheres podem ser entendidas como “preciosidades” que se tornam “objetos raros” conforme as transformamos. Argumentou que tal exercício não era difícil porque a convivência com ele, um “espírito mais forte”, ainda que “deformado”, resultaria no aprendizado ideal... E completou que “onde há o maior, cessa o menor”.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas