terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – o vínculo de Nancy com o velho é incompreensível para o jovem Péricles; autoestima elevada de uma, irritação do outro; “vivência filosófica” e limitações na compreensão; sinceros em vez de ignorantes amorosos; perspectiva materialista orienta as opções de Nancy


Péricles não gostou nem um pouco de saber que Nancy compreendia a vida tal como o velho lhe ensinara... Por isso disse que ele era terrível. Ela não concordou e emendou que o velho era muito bom e inteligente... Muitas vezes acontecia de se perceber admirando os cabelos brancos dele. Como não ficar encantada, pois ele só pensava e falava dela, e para ela, o tempo todo?
O rapaz não escondeu o seu ciúme e chamou-o de “egoísta”. E acrescentou que o mesmo adjetivo servia para ela também. Nancy discordou completamente de Péricles e confessou que o velho não a queria para ele propriamente, pois vivia a dizer-lhe que ela devia pertencer unicamente a si mesma. Sempre que pedia que a beijasse, dizia que devia beijar a si mesma, os próprios braços, e dessa forma ela poderia ter a certeza de que dispensava carinho a uma mulher verdadeiramente linda. Quem poderia experimentar tal prazer? Também por isso Nancy mostrava que podia se sentir privilegiada.
Péricles concluiu e manifestou à Nancy que o velho era “idiota e perverso”... Ela argumentou que nascera só. Podemos entender aí que se tratava de um tipo com passado bem carente. O rapaz continuou a mostrar-se indignado e quis dizer que aquilo era mais um motivo para ela mudar de vida. Como não se incomodar por viver com um velho? A mulher respondeu que vivia na casa de um velho, o que é bem diferente...
Ao que parece as últimas palavras dela o irritaram profundamente, tanto é que se despediu e virou-se em direção à porta. Ele só voltou porque Nancy riu-se a valer enquanto pedia para que ficasse. Em meio ao riso, disse-lhe que precisava saber que dizia aquelas coisas “de brincadeira”. Péricles não deixou por menos... Quer dizer que por seis horas a sua pretendida estivera a brincar com a conversa que ele julgava das mais sérias?
Seis horas não representam muito tempo... É pouco, sentenciou Nancy. O moço estranhou... Ela sugeriu que se sentassem e confirmou que achava pouco tempo em comparação aos três anos que já vivia com o velho. Péricles exclamou que aquilo só podia ser um verdadeiro horror...
(...)
Depois que se acomodaram no divã, Nancy explicou que levava uma vida filosófica com o velho... Quis saber se o jovem enamorado sabia que o velho era um filósofo. Péricles concordou que, pelo ar sereno que o outro ostentava, bem podia ser verdade que fosse filósofo. Ao seu modo, Nancy soltou uma explicação sobre o que entendia por filosofia: “a gente diz o que sente; os outros sentem o que a gente não diz; e, afinal, a gente diz o que não sente e sente o que não diz”.
O almofadinha fez cara de espanto e disse que não havia entendido nada. Nancy quis mostrar que não havia problema e que não era coisa que se devesse compreender. Justificou dizendo que “se todos compreendessem, as grandes ciências, e, até a metafísica, passariam de moda, como os tangos e os sambas”...
A confusão se estabeleceu de vez. Péricles quis saber se, então estiveram apenas filosofando o tempo todo. Ela confirmou e disse que tudo o que ele lhe dissesse seria respondido do mesmo modo que o velho a tudo respondia, ou seja, filosoficamente.
(...)
O fim deste confuso diálogo caiu como um alívio ao Péricles, que se adiantou a perguntar se a partir daquele instante poderiam conversar como “dois ignorantes” que se gostam. Nancy respondeu que podiam dialogar com sinceridade. Ele se antecipou para não permitir que a conversa voltasse ao “campo filosófico” e disse que ao confessar o seu amor estava sendo sincero. Precisava saber da parte dela.
Nancy respondeu que era sincera ao dizer que não gostava de ninguém e que, mais do que isso, amava a vida.
Péricles disse que já havia lido aquele tipo de conteúdo de algum poeta. Mas, intrigado, quis saber dela o que seria “amar a vida”. Nancy afirmou que não falava em sentido poético e que pensava que “amar a vida” é simplesmente vivê-la bem. Depois para ir direito ao ponto que interessava ao outro, resumiu a situação em quatro palavras: “Você não tem dinheiro”!
Então era isso? O moço tomou coragem e sustentou que tinha uma posição social e que seu futuro era dos mais brilhantes. Nancy respondeu que aquilo já passara de moda e que no momento o que contavam eram os “presentes de brilhantes” e acrescentou que “brilhantes, só como presente; como adjetivo, nem para o futuro”.
Então era isso? Péricles sustentou que poderia oferecer-lhe uma “situação na sociedade”, assim, juntos aguardariam o futuro... Mas não conseguiu concluir porque ela o interrompeu dizendo que ele era ingênuo demais. Não há futuro algum! Apenas passado e presente! Disse ainda que “antigamente, o futuro dos moços era o presente dos velhos”... Insistiu que no momento não se envelhece mais como os velhos e, assim sendo, “o futuro foi abolido, provisoriamente”.
Era demais para o rapaz... Ele quase vociferou que ela falava como os filósofos. Nancy respondeu que pensava “como ela mesma”.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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