quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – o começo do segundo ato e a arrecadação de esmolas dos últimos fiéis a deixarem a igreja; sobre o desnecessário e improdutivo ato de contar a “féria”; táticas para o bem arrecadar; Barata tem a promessa de que será protegido pelo velho; sobre a traição do último discípulo empolgado pelo serviço público; críticas à acomodação dos que buscam a realização sem a necessidade de lutar


No início do segundo ato vemos os dois mendigos diante da mesma igreja... Cada um posicionou-se num extremo da escadaria. Em silêncio coletam os donativos dos últimos fiéis que deixam o templo religioso que aos poucos tem suas luzes internas apagadas.
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Barata quis saber quanto o companheiro havia arrecadado... O outro respondeu que recebera duzentos e noventa e seis mil e quatrocentos réis. E o colega? Barata revelou que ainda não havia feito a contagem... O velho advertiu que não devia mesmo contar. A contagem do arrecadado tornava mendigos suspeitos. Aquilo era uma desmoralização!
Mas como ele podia dizer aquilo se tinha feito a própria contagem? O velho explicou que fazia a soma conforme recebia as esmolas... Algo “de cabeça”, e isso se torna interessante porque, dessa forma, os transeuntes ficam sem saber quanto o pobre coitado recebeu. De outra forma poderiam ficar com inveja por levarem no bolso bem menos que ele. O bom mendigo devia saber que deve exibir algumas moedas em seu chapéu, pois elas sempre incentivam os altruístas a doarem outras.
Barata ouviu e deu a entender que seguia o método, pois respondeu que sempre deixava seiscentos réis à mostra no chapéu. O velho redarguiu que devia deixar mais... Se o transeunte via apenas níqueis, seria levado a doar outros níqueis. O mais correto seria exibir duas ou três moedas de prata. Isso é mais ou menos como nas listas de arrecadação/subscrições. Se o primeiro é generoso, os próximos a assinar ficam constrangidos de fazê-lo por valores menores.
(...)
Barata estava animado e queria contar a “féria”... Tinha certeza de que pela primeira vez fizera excelente arrecadação. O velho insistiu que não devia contar mais, e acrescentou que passaria a cuidar dele. Barata agradeceu e revelou que os demais mendigos eram sempre maus com ele. O velho observou que os mendigos eram desunidos e que precisavam “fundar um sindicato”, mas independentemente disso o companheiro podia contar com a sua proteção.
O velho não queria agradecimentos... Explicou que, em vez disso, queria “absoluta obediência”, sobretudo porque o seu último protegido o decepcionara. Teria sido ingrato? O velho explicou com amargura em sua voz que o rapaz havia sido idiota porque o desobedeceu. Um tipo que tinha excelentes qualidades físicas e aparência ótimas para se dar bem como mendigo... Era magro e tinha o rosto encovado, seus olhos eram fundos e tinha cabelos finos e louros. Quem o visse logo imaginava um “filho de gente nobre arruinada”. Mas o tipo “abandonou a carreira” ao aceitar um emprego público.
Barata não escondeu a admiração e emendou que o rapaz tinha tirado a “sorte grande”. O velho deu de ombros e respondeu que o salário do outrora mendigo discípulo chegava a mísero “conto e duzentos por mês”. Barata arregalou os olhos e exclamou que se tratava de “belo ordenado”... O velho advertiu que, se pensava daquela maneira, começava mal. O novo protegido acrescentou que o salário não era “nada mal para um moço”.
Em tom professoral o velho disse que era “de moço” que devia começar a mendigar... Lembrou das crianças de cinco e seis anos que já eram pedintes e fez questão de garantir que elas seriam “notáveis mendigos” no futuro. O mendigo deve começar cedo! Um conto e seiscentos é salário para os incapazes! Além dessas máximas, o velho garantiu que os inteligentes jamais se contentam com um salário ainda que alto. Apenas os “vencidos pela vida” se contentam com ordenados fixos.
Os cargos públicos? Só servem para inutilizar os homens! Quando são dispensados ficam perdidos sem saber a quem recorrer, pois já não têm a proteção do Estado.
Ele acrescentou que era decepcionante ver seu antigo protegido acompanhando cabisbaixo certos figurões da República. Sua impressão era a de que devia estar arrependido, pois certamente entendera que trocara a “falsa humildade” (do mendigo) por outra que devia ser constantemente aperfeiçoada. Esse era o alto preço que tinha a pagar se quisesse vencer.
Barata quis entender... Vencer? O velho explicou que “vencer” para o rapaz era “vencer na vida” conquistando postos sem a necessidade de lutar... Um “efeito sem causa”... Barata emendou que se tratava de uma “vitória puxada a burros”.
O velho concordou. E comparou a situação com a do os carros de antigamente que acabaram substituídos por táxis motorizados.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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