As pessoas em Savignano sul Panaro tinham Pighino como a um “mau cristão”, “herético”, “excêntrico e fraco da cabeça”... E até um “bobalhão”.
É, mas O Queijo e os Vermes esclarece que este moleiro era dotado de inteligência sutil... Tratava-se de um tipo astuto, que se dispunha a debater com as autoridades... É claro que as pessoas simples de sua aldeia, além do pároco local, não podiam entender suas afirmações contrárias à importância dos santos, jejuns, confissão... Suas posições eram bem próximas das dos luteranos... E ele era ainda mais radical ao afirmar que todos os sacramentos (excluía apenas o batismo) eram criações da Igreja Católica, e que Cristo nada tinha a ver com eles... Pighino garantia que mesmo sem a eucaristia o cristão poderia alcançar a salvação... E isso valeria para “grandes” e “pequenos”, pois no paraíso “seremos todos iguais”.
Então as opiniões de
Pighino chocavam seus concidadãos... Ele tinha coragem de dizer que inferno e
purgatório não existiam, pois se tratavam de invenções dos padres para que
pudessem ganhar dinheiro explorando a fé das pessoas... Ele dizia também que a
Virgem Maria nada tinha de especial, pois ela “nascera de uma serva”; que
Cristo não devia ter sido homem de bem porque foi crucificado; que após a morte
da pessoa sua alma também definhava; e que qualquer fé (religião) podia ser
considerada boa, pois isso dependia da sinceridade dos fiéis.
Pighino passou por várias sessões de tortura...
Resistiu bravamente e negou a participação de cúmplices que compartilhassem
aqueles pensamentos. Garantiu que a leitura dos Evangelhos em língua vulgar o
iluminara. Aliás, além dos Evangelhos em língua vulgar, ele também havia lido “o
Saltério, a gramática de Donato e o Fioretto
della Bibbia”... Após o seu julgamento, foi condenado a jamais se retirar
de Savignano, mas fugiu de lá porque sofria preconceito e hostilidades
diversas... Porém decidiu apresentar-se ao Santo Ofício em Ferrara para pedir
perdão. Então as autoridades concederam-lhe uma muito boa oportunidade “arrumando-lhe
um cargo de criado do bispo de Modena”.
(...)
Menocchio e Pighino, dois moleiros...
O texto destaca que a profissão de moleiro era comum e muito requisitada
na Europa pré-industrial... As diversas pequenas localidades demandavam moinhos
(de água ou de vento)... Não se deve estranhar a “presença maciça de moleiros
nas seitas heréticas da Idade Média”... No século XVI, Andrea de Bergamo, poeta
satírico, disse que “um verdadeiro moleiro é meio luterano”... Para os
camponeses, o moleiro não era alguém em que se podia confiar plenamente, e o
relacionavam a um merecedor das “penas do inferno”, dado que o tinham como “esperto,
ladrão e enganador”.
O canto popular toscano Fui até o
inferno e vi o Anticristo atesta a visão que os camponeses tinham do
moleiro... Seu conteúdo é satírico e sua mensagem reveladora da opinião que
tinham sobre os moleiros: No inferno, o demônio é avistado segurando um moleiro
pela barba ao mesmo tempo em que pisa num alemão e mantém um taverneiro e um
magarefe (abatedor de gado; açougueiro) presos... Perguntado a respeito de qual
daqueles infelizes seria o mais malvado, o anticristo responde:
(...) Atenta que te
mostro.
Vê bem quem é que com
as mãos rapina:
o moleiro que mói a
alva farinha.
Vê bem quem é que com
as mãos agarra:
ó moleiro que mói a
farinha alva.
Da quarta parte salta
a alqueire inteiro:
o mais ladrão de
todos é o moleiro.
Mais sobre moinhos e moleiros na próxima postagem.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/08/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_16.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto