Acontecia muitas vezes de os homens do campo (principalmente entre “os não tão isolados”) incorporarem elementos do cristianismo à sua “religião camponesa”... A título de exemplificação, vale o registro sobre o “velho camponês inglês” e seus juízos que “mesclavam sua compreensão da natureza” a conceitos religiosos e teológicos, assim, ele entendia “Deus como um bom velho”; “Cristo como um belo jovem”; “a alma como um grande osso cravado no corpo”; o além como “um lindo campo verde”, para o qual todos os que tiveram um bom procedimento durante a vida terrena iriam após a morte...
Com Menocchio assistimos situação parecida, embora devamos ressaltar que o seu caso é exemplar porque se trata de um leitor de temas complexos num tempo em que o catolicismo romano enfrentava a crise provocada pelos eventos da Reforma.
(...)
Na sequência o texto trata
do longo poema do camponês de pseudônimo Scolio, de Lucca... O poema data de
uns vinte anos antes do processo de Menocchio... O título do poema é Settennario e tem temática religiosa e
moral... O conteúdo é dos mais polêmicos, dado que suas palavras contemplam as
visões proféticas de Scolio.
Segundo ele, Deus apareceu numa nuvem de ouro e lhe
fez várias revelações, sendo que a principal delas é a de que nenhuma religião
é superior às demais, e que os dez mandamentos resumem o núcleo de todas elas.
(...)
O camponês garante que Deus enviou diversos profetas aos vários povos...
“Três capitães (os profetas) foram enviados pelo imperador (Deus)”: um à
África, outro para a Ásia e outro para a Europa... Judeus, turcos e cristãos
foram “visitados” e receberam uma cópia da lei (os dez mandamentos)... Dado que
os costumes são diferentes, a lei religiosa pode ter sido comentada de forma
variada, mas Deus é único... O poema explica que muitos outros capitães foram
enviados pelo imperador: Noé, Abraão, Moisés, Josué, Davi, Salomão, Elias,
Cristo e Maomé... O poema adverte sobre a necessidade de as lutas entre
cristãos e turcos terem de acabar, pois só a conciliação interessava.
Isso não haveria de ser tão difícil de ocorrer porque os mandamentos são
a base das três religiões (tradição da “lenda dos três anéis”) e também de
religiões mais antigas, e de “outras que estão por vir”: uma não especificada;
aquela que “Deus nos deu nos nossos dias” (a anunciada por Scolio em seu poema);
e mais “duas futuras”. Sete religiões.
A religião da profecia de Scolio é bem simples, pois seus preceitos são
o respeito aos mandamentos e aos “princípios da natureza”... Deus se revela uno
e, assim, o dogma da Trindade é negado:
Não se adore nem
creia que um Deus só
não tenha companheiro,
amigo ou filho:
é filho seu e servo
amigo quem
seus preceitos cumpre
e ao dito atém-se.
Não adoreis outrem,
ou Esp’ito Santo:
Sou Deu e Deus está
em toda parte.
O batismo seria sacramento reservado aos adultos, e isso se confirma no
trecho:
(...) e se batize após trinta anos, isto
como Deus e os profetas ordenaram
e como São João batizou ao Cristo...
Já a Eucaristia aparece no poema como desprezada:
que
o pão abençoado
era
o meu corpo e era o meu sangue o vinho,
vo-lo
disse porque era meu dileto,
porque
era um cibo e um sacrifício pio
mas
não vo-lo ordenei como decreto
e
sim porque a Deus lembram pão e vinho.
E
nada importam vossos argumentos
e sim
cumprir com os dez mandamentos
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/08/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_12.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto