Scolio queria fazer entender que Cristo não havia decretado os sacramentos do batismo e da eucaristia... Sem importância alguma, sequer deveriam ser obrigatórios:
O meu batismo com o
sacrifício,
a minha morte e a
comunhão e a hóstia
mandamentos não são
mas um ofício
a ser feito às vezes
em minha memória.
Fica claro que o glamour
das cerimônias católicas seria totalmente contrário ao desejo de Deus, para
Quem o culto deve ser o mais simples possível... Para buscar a salvação, o fiel
deve obedecer apenas os dez mandamentos de modo literal, sem levar em
consideração qualquer “explicação de doutores” a respeito deles:
Que
não haja colunas nem figuras
nem
música nem órgãos, instrumentos,
nem
campanários, sinos ou pinturas,
nem
relevos nem frisos ornamentos:
sejam
todas as coisas simples, puras
e
só se escutem os dez mandamentos.
Scolio deixava claro que era o próprio Deus que apresentava sua palavra
de modo simples e claro para que todos a entendessem. O texto do camponês
apresenta linguagem “larga e plana”, nada de palavreado “inchado, escuro, culto
e afetado”... Ao que tudo indica o radicalismo camponês anabatista influenciava
Scolio... A doutrina expressa em seu poema garantia que os que governam devem exercer
o poder paternalmente. Assim como para os anabatistas, Scolio tolerava a
autoridade... Ele previa o desaparecimento do líder da igreja romana num futuro
não determinado... Mas não classificava o papa como “anticristo”:
Se o Senhor meu te
fez seu intendente
e te incumbiu da
administração,
se te fez duque,
papa, imperador,
se deu-te humanidade
e discrição,
se te deu graça, empenho,
honra, vigor,
hás de ser nosso pai
e defensor,
o que tens não é teu,
é doutros, meu;
salvo a honradez,
tudo é de Deus.
Há muito do conteúdo da utopia “Cocanha” nas palavras de Scolio... Sobretudo
quando ele define a sociedade (que por ele haveria de ser governada): as
pessoas não lidariam com tarefas de produção manual além das “importantes e
principais”; não haveria lojas e ninguém teria necessidade de buscar
conhecimentos doutos, tidos como vaidades, pois doutores (médicos) seriam
desnecessários na “nova realidade”... As extravagâncias dos botequins, orgias e
beberagens deveriam ter fim; os que trabalham a terra deveriam dedicar-se
apenas ao “útil e louvável”; os que se destinassem ao combate pela fé seriam
reconhecidos, louvados e bem pagos; “soberba, crápula, arrogância, pompa,
superstição, vanglória” deveriam desaparecer; o monarca, senhor de todo o povo,
“pastor de seu rebanho”, conduziria a todos a um modo despojado de ser, o “vestir-se
e calçar-se seriam pobres” e deveriam bastar apenas para o essencial.
A justiça prevaleceria porque a lei “breve, clara e comum” estaria ao
alcance do entendimento de todos, “posta em vulgar”, todos a entenderiam,
fugiriam do mal e perseguiriam apenas o bem... O igualitarismo seria outra
marca da sociedade que viria, tanto que as diferenças entre os nascidos “em
cidade, vila ou em castelo, de baixa ou superior linhagem” desapareceriam e
ninguém teria “mínima vantagem” sobre quem quer que fosse.
Bastaria “ter boca” para “merecer com que viver”... Não haveria
tolerância para os que desejassem viver do trabalho dos demais...
É
ímpio, desumano que desfrutes
enquanto
um outro, ou eu, por ti sofremos.
Deus
nos fez ricos, nunca nos fez servos:
por
que desejas que te sirva e ceve?
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/08/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_14.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto