quarta-feira, 14 de agosto de 2013

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – influências do Corão, e também do mito da Cocanha, em “Settennario”, de Scolio; Menocchio e Scolio, leituras comuns, expectativas e modelos diferentes; Pighino, outro moleiro processado pelo Santo Ofício

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/08/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_12.html antes de ler esta postagem:

As considerações sobre a sociedade em Settennario esclareciam a utopia camponesa de Scolio... Vida em abundância e prazer, com felicidade plena, “só no céu”. Ele esclarecia que Deus o teria levado a um monte de onde pôde contemplar o mundo inteiro... Jardins e belos palácios, florestas, prados, rios e lagos cercados por “muro de gelo e fogo”... Uma fartura sem igual: “almoços, ceias, ganhos em ouro, seda e linho; donzelas escolhidas, pajens, leitos, árvores, relvas, bichos, isso tudo dez vezes por dia renovava os frutos”.
É claro que podemos notar aí o desejo camponês de uma recompensa após a morte, quando, enfim, a opulência seria uma realidade... Também se percebe “um eco do paraíso do Alcorão”. E, misturado a essas influências, elementos do mito da Cocanha... Deus aparece a Scolio como “divindade andrógina, uma donnhoma, com mãos abertas e dedos erguidos”... Eles simbolizam os dez mandamentos e de cada um brota um rio que saciará os viventes: o primeiro é de mel suave; o segundo de açúcar; o terceiro de ambrosia; o quarto de néctar; o quinto de maná; o sexto de pão branco e leve, capaz de fazer ressurgir os mortos; o sétimo de águas preciosas; o oitavo de manteiga branca e fresca; o nono de perdizes saborosas e gordas saídas do paraíso; o décimo tem ricas pedras em seu leito, “ribas de ouro, lírios, violetas, rosas, prata, flores e esplendor do Sol”.
Há muito em comum entre Scolio (suas profecias) e Menocchio (com seus discursos)... O alcorão e a Divina Comédia, de Dante, podem ter sido leituras comuns aos dois. Mas foi o contato com a escrita na escola que permitiu a eles uma sistematização e elaboração mais apurada da tradição, mitos e aspirações que já conheciam pela tradição oral... É possível que Menocchio tenha frequentado uma escola de ábaco (inclusive dedicou-se a ensinar para sobreviver)... Scolio garantia que fora aluno, e pastor de gado, artesão, conhecedor das sete artes mecânicas... Menocchio se definiu como “filósofo, astrólogo e profeta”; Scolio se dizia “astrólogo, filósofo e poeta”, “profeta dos profetas”...
Em relação às suas diferenças, ressalta-se que Scolio permaneceu no ambiente camponês... Assim foi fisicamente, e também no campo de suas reflexões e conceitos... Menocchio era um tipo dado às viagens (várias vezes se dirigiu a Veneza)... Scolio valoriza apenas os quatro livros sagrados (o Velho e o Novo Testamentos, o Alcorão e o Settennario, elaborado por ele mesmo). Sabemos que Menocchio comprou o Fioretto dela Bibbia e obtivera por empréstimo o Decamerão e as Viagens de Mandeville. Em que pese ter afirmado que a Escritura poderia ser resumida a quatro palavras, o moleiro era do tipo que pretendia dominar também a literatura das autoridades religiosas (em particular a de seus adversários inquisidores) É como se preparasse para enfrentá-los em seus domínios.
Ginzburg leva em conta que, apesar de não termos uma definição do mundo desejado por Menocchio (o seu “mundo novo”), é bem provável que ele não fosse parecido com a “utopia desesperadamente anacrônica” exposta por Scolio.
(...)
Pellegrino Baroni (que também atendia por Pelegrino di Grassi) foi outro moleiro que sofreu processo do Santo Ofício. Popularmente conhecido por Pighino (“o gordo”), Baroni vivia na aldeia de Savignano sul Panaro, na região alpina de Modena... Este Pighino sofreu processo em 1570, sendo que alguns anos antes foi forçado a abjurar em relação a certas afirmações relativas à fé... Como veremos mais adiante, não por acaso, era mal visto pelos demais de seu povoado.
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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