quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – do aprendizado na prisão e do triste fim da Maria; filosofando sobre a complicada vida em sociedade; Barata consegue boa esmola de uma linda e elegante mulher; o velho se esconde de Nancy; alguns detalhes para comparação da peça com o filme


Barata quis saber se o companheiro havia sofrido muito enquanto esteve na prisão... O velho explicou que o primeiro dos seis anos foi muito difícil, mas conforme o tempo passou conseguiu se resignar e aprender que há certos acontecimentos inevitáveis na nossa vida, e que eles se sucedem. Filosofou dizendo que é mais ou menos como os ciclos da natureza, não podemos evitar a ventania ou as tempestades. As “desgraças pessoais” também são inevitáveis.
O velho disse ainda que, assim que deixou a prisão, visitou Maria diversas vezes no hospício. Certo dia notaram que ela havia fugido... Há quem diga que ela “anda pelas ruas a divertir os moleques”. Nunca mais a vira, Barata emendou que certamente devia estar velha. E em tom de conclusão, arrematou que a vida do companheiro era muito triste. O outro respondeu que sua vida era “apenas vida”. Não há aquela que seja triste ou alegre, já que todos nascemos e morremos, e aí estão o princípio e o fim de todos, somos iguais.
Barata observou que “viver” não se resume a “nascer e morrer”... O velho concordou e acrescentou que “viver é raciocinar”, e este é o bem supremo, pois quem pratica o exercício de raciocinar não sofre. O raciocínio nos leva a conhecer o fim de tudo... Como as pessoas não se importam com o raciocínio, a sociedade sofre.
Ele teve de explicar essas últimas considerações e disse que “a sociedade admitiu os vícios e as virtudes”... Nem um nem outro faz parte da vida. Há uma série de sensações e atitudes que não passam de fantasias (citou amor, ódio, saudade, egoísmo, honra caráter, caridade) que só dificultam a vida. Na verdade viver é simples e consiste em “respirar, comer, beber e dormir”... A natureza nos oferece tudo!
Barata acabou concordando e disse que ainda não havia pensado a respeito. O velho o advertiu dizendo que ele “pensava que pensava”... Barata aceitou que “complicaram a vida sem a menor necessidade” e o companheiro adiantou que era exatamente por isso que abandonara a “vida complicada pelos outros”. Dessa maneira, seguia vivendo à margem e tornara-se “espectador do sofrimento humano”. Enquanto isso os demais engajados na sociedade seguiam lutando para se livrarem dos erros que vivem repetindo. Era preferível “contentar-se com os restos que caem das mesas fartas”.
(...)
Essa conversa foi interrompida pela chegada de uma linda e elegante mulher... Barata se dirigiu a ela pedindo uma esmola de acordo com o que vinha aprendendo com o velho... Assim que recebeu o donativo, agradeceu com um “Nossa Senhora lhe acompanhe”. A mulher respondeu com um “Amém” e doou mais um níquel.
Ela se movimentava como quem está à procura de alguém... Não foi por acaso que o velho se escondeu sob o chapéu. Assim que ela se afastou, perguntou ao Barata se ele tinha ideia de quem era aquela... Este respondeu que devia ser bem rica pois havia lhe dado dois mil réis.
O velho confessou que aquela mulher vivia com ele. Barata se espantou e perguntou se ela sabia que ele era um mendigo... O velho respondeu que ela o imaginava um rico capitalista. Dessa forma não perguntaria qual é a sua profissão.
Por que não? O ingênuo Barata perguntou... Porque é feio, o velho e rico mendigo respondeu.
O primeiro ato da peça termina neste ponto.
(...)
Cabe destacarmos alguns detalhes...
* Logo notamos que o desenrolar do diálogo entre o velho mendigo e Barata acontece numa só noite.
* Como vimos, no filme temos a ida de Yuca (Juca) ao escritório do empresário para exigir seu projeto de volta. Após um entrevero, o tipo aciona um alarme que atrai seguranças armados. Logo o operário é capturado em flagrante como se estivesse saqueando o cofre. Daí o motivo de sua prisão.
* Como sabemos, no filme, Maria, a mulher do Yuca ficou transtornada com o golpe do patrão e acabou se enforcando no quarto da própria casa. O desfecho da personagem é bem diferente na peça.
* Obviamente a que chega à porta da igreja no final do primeiro ato é Nancy. O filme constrói essa personagem com riqueza de detalhes que não são citados na peça. Em “Dios se lo pague” a vemos vaidosa, em dívida com o hotel e se arriscando na jogatina e encontros temerários, como foi o caso com Péricles...
* Na peça não há qualquer menção ao encontro dos protagonistas no teatro (apresentação de Lohengrin, de Wagner).
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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