sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – décima segunda parte – o venenoso frasco subtraído de Paule; Anne decide não mais viver e com isso sepultaria de vez todas as que nela existiram; no trajeto para o ato final está o companheiro de tantos anos ainda motivado pela vida

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/12/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_29.html antes de ler esta postagem:

O fato é que Anne possuía meios para colocar um termo à vida. Em sua caixa de luvas estava um frasquinho com conteúdo venenoso de cor castanha (ácido prússico - cianureto de hidrogênio). Era o mesmo que ela havia subtraído de Paule na época em que esta se comportava tresloucadamente (até que conseguiu tratamento com o doutor Mardrus; ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/01/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-de_31.html).


(...)

Decidiu recorrer ao pequeno frasco numa ensolarada manhã, quando descansava no gramado e vigiava a pequena Maria de perto.
Olhou para a pequena, mas não se sensibilizou pela vida... Pensou que quando a netinha tivesse a sua idade, ela já não existiria... O futuro pertencia à Maria e nele não haveria ambiente para a lembrança, apenas para o esquecimento... O nome de Anne seria pronunciado? Na verdade sua ausência seria perfeita... Ninguém se importaria.
Robert Dubreuilh também não faria parte do futuro da filha de Nadine... A única certeza que podia sustentar em relação aos dois era a de que não seria improvável juntarem suas cinzas às dela, mas suas mortes não seriam confundidas.
(...)
Notamos que no momento que se definia como derradeiro, Anne ainda pensou sobre as coisas boas e belas da vida que se passara... As viagens com Dubreuilh para a Grécia; os momentos com Lewis na América; as diferentes oportunidades em hotéis confortáveis e nos ambientes mais rústicos com o “céu por teto”. Quantos braços a acolheram e lhe foram afáveis?
Os que estão decididos a colocar um termo à própria vida não podem se perder em recordações... Elas só podem resultar em agonia... Melhor seria pensar nos vários mortos que carregamos em nosso ser.
Anne por exemplo lembrou-se da menina que havia sido... Aquela que acreditava num paraíso... Morta!
Morta também a “moça Anne”, a mesma que valorizava livros, ideias e o amor do homem escolhido... Morrera outras tantas vezes... Não mais vivia aquela que apostava que um dia o mundo seria de felicidade... E tampouco a que resolvera se tornar amante de um tipo interessante como Lewis.
Diego estava morto... Também todas aquelas que ela havia sido... Evidentemente elas não possuíam túmulos... Para que fossem enterradas de uma vez por todas seria preciso encerrar a vida desta Anne que não se encaixa mais em nenhum projeto.
(...)
Então, na manhã ensolarada, quando estava a pajear a pequena Maria no gramado do jardim, Anne resolveu recorrer ao frasco depositado em sua caixa de luvas. Quase que automaticamente levantou-se, abandonou a criança à própria sorte e tomou o rumo de seu quarto.
Passou diante da janela do quarto de Robert, que estava concentrado em seus textos... Sabia que podia roubar-lhe um último sorriso, mas não quis atrapalhá-lo. Ele continuava empolgado com a vida; ela planejava o suicídio.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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