O fato é que Anne possuía meios para colocar um termo à vida. Em sua caixa de luvas estava um frasquinho com conteúdo venenoso de cor castanha (ácido prússico - cianureto de hidrogênio). Era o mesmo que ela havia subtraído de Paule na época em que esta se comportava tresloucadamente (até que conseguiu tratamento com o doutor Mardrus; ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/01/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-de_31.html).
(...)
Decidiu recorrer ao pequeno frasco numa ensolarada manhã, quando
descansava no gramado e vigiava a pequena Maria de perto.
Olhou para a pequena, mas
não se sensibilizou pela vida... Pensou que quando a netinha tivesse a sua
idade, ela já não existiria... O futuro pertencia à Maria e nele não haveria
ambiente para a lembrança, apenas para o esquecimento... O nome de Anne seria
pronunciado? Na verdade sua ausência seria perfeita... Ninguém se importaria.
Robert Dubreuilh também não faria parte do futuro da
filha de Nadine... A única certeza que podia sustentar em relação aos dois era
a de que não seria improvável juntarem suas cinzas às dela, mas suas mortes não
seriam confundidas.
(...)
Notamos que no momento que se definia como derradeiro, Anne ainda pensou
sobre as coisas boas e belas da vida que se passara... As viagens com Dubreuilh
para a Grécia; os momentos com Lewis na América; as diferentes oportunidades em
hotéis confortáveis e nos ambientes mais rústicos com o “céu por teto”. Quantos
braços a acolheram e lhe foram afáveis?
Os que estão decididos a colocar um termo à própria
vida não podem se perder em recordações... Elas só podem resultar em agonia...
Melhor seria pensar nos vários mortos que carregamos em nosso ser.
Anne por exemplo lembrou-se da menina que havia sido... Aquela que acreditava
num paraíso... Morta!
Morta também a “moça Anne”, a mesma que valorizava livros, ideias e o
amor do homem escolhido... Morrera outras tantas vezes... Não mais vivia aquela
que apostava que um dia o mundo seria de felicidade... E tampouco a que resolvera
se tornar amante de um tipo interessante como Lewis.
Diego estava morto... Também todas aquelas que ela havia sido...
Evidentemente elas não possuíam túmulos... Para que fossem enterradas de uma
vez por todas seria preciso encerrar a vida desta Anne que não se encaixa mais
em nenhum projeto.
(...)
Então, na manhã ensolarada,
quando estava a pajear a pequena Maria no gramado do jardim, Anne resolveu
recorrer ao frasco depositado em sua caixa de luvas. Quase que automaticamente
levantou-se, abandonou a criança à própria sorte e tomou o rumo de seu quarto.
Passou diante da janela do quarto de Robert, que
estava concentrado em seus textos... Sabia que podia roubar-lhe um último
sorriso, mas não quis atrapalhá-lo. Ele continuava empolgado com a vida; ela
planejava o suicídio.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/12/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_86.html
Leia: Os
Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto