Henri não tinha a menor intenção de voltar a se envolver com a política francesa... Tampouco pretendia incorporar-se a mobilizações em defesa deste ou daquele ativista de qualquer parte...
Em Saint-Martin sentia-se acolhido pela aromática sombra da tília... O som de um carro de boi ao passar pela estrada e o delicado quarteto de César Franck traziam-lhe paz imensurável... Era isso o que sempre quis.
Observou Nadine em sua quietude e contemplação da música que apreciava. É disso mesmo que precisava... Não tinha de se meter nos assuntos de Tananarive (Antananarivo, ou Tana, como é atualmente conhecida a capital de Madagascar)... Em vez disso, devia se dedicar à felicidade da esposa e à educação da pequena Maria.
Sobre a mesa estavam os papéis onde rascunhava o texto que daria forma ao seu próximo livro... Sentia-se muito bem.
(...)
A Vigilance do mês de agosto
(é bom que se saiba que o ano é 1947) publicou seu artigo sobre o que se
passava em Madagascar.
O texto reforçava a ideia de que o que havia escrito
anteriormente não chegava aos pés da monstruosa verdade sobre o que ocorria na
ilha separatista... As atrocidades ocorriam na capital e em outras partes de
Madagascar... Os jornalistas, as Câmaras francesas, o “Tribunal de Cassação”, o
presidente da República e todos os que se silenciavam diante dos crimes eram
cúmplices.
Execuções sumárias dos líderes das forças de libertação, atentados aos
seus advogados, tortura aos acusados eram apenas alguns dos horrores
testemunhados por militantes que se arriscavam a enviar dossiês.
Ao analisar a publicação, Henri concluiu que seu texto contribuiria para
esclarecer uma quantidade maior de leitores... Depois considerou que aquilo
“não era grande coisa”.
Mas o que haveria de fazer? Estava decidido a se afastar daquele tipo de
discussão... Além do mais, sua dedicação à repercussão da situação em
Madagascar (diariamente investigava os pequenos artigos de jornais que
reportavam o processo) fazia com que se atrasasse ainda mais na conclusão de
seu livro.
(...)
Certa manhã, enquanto trabalhava com os manuscritos, Lachaume
apareceu... O tipo parecia ter envelhecido mais do que o normal... Antecipou
que entendia que Henri não o quisesse recebê-lo, mas tinha informações a
respeito do “caso malgaxe” que podiam interessar-lhe.
A visita podia ser das mais
desconfortáveis... Sobretudo porque Lachaume havia sido o autor de “Abaixo as
máscaras”, que o desqualificara (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/08/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-fim.html). Então o rapaz foi dizendo que os rancores deviam ser guardados porque
havia “vidas humanas a salvar”... Na realidade Henri já não remoía aqueles episódios.
(...)
Lachaume começou dizendo
que o texto de Henri na Vigilance era
muito bom... O conteúdo tinha potencial para provocar agitações... Henri deu de
ombros ao mesmo tempo em que disse que não havia ocorrido grande coisa após a
publicação.
O rapaz revelou que
estava ali para oferecer-lhe um tipo de ação “mais ampla”... Disse que não esperava
que ele a recusasse...
Em síntese, a ação
consistia na formação de um “comitê de defesa dos malgaxes”... Alguém teria de
fazer algo! Nada podiam esperar dos pequenos burgueses, então os comunistas tomavam
a iniciativa.
Henri respondeu que até aquele momento eles também não haviam feito
grande coisa.
Lachaume destacou que o que
se processava em Madagascar visava atingir o partido e liquidar o MDRM*. Então,
pela lógica do rapaz, se os comunistas “fizessem muito barulho” na defesa dos
perseguidos podiam provocar ainda mais repressão aos rebeldes malgaxes.
* Movimento
Democrático da Renovação Malgaxe, grupo político fundado em Paris em fevereiro
de 1946, que se mobilizou em torno da independência de Madagascar e conseguiu
eleger muitos delegados nas eleições de janeiro de 1947. Os adversários do MDRM
se concentravam no PADESM (Partido dos Deserdados de Madagascar)... Os
conflitos entre os dois grupamentos provocou a proclamação de um Estado de
Sítio. Os episódios narrados em “Os Mandarins” fazem referência à violenta
perseguição a inúmeros militantes e delegados legitimamente eleitos. Tribunais
militares e cortes criminais procediam a julgamentos que resultavam em prisões
e condenações à morte.
A ideia de Lachaume era a de constituir um
comitê formado por maioria não comunista... Depois que lera o artigo de Henri,
entendera que ele era dos mais qualificados... Ele explicou que precisava saber
se estava de acordo... Aliás, os companheiros de partido aprovaram o nome de
Henri, mas alguns (como Lafaurie) queriam ter certeza de que ele aceitaria o
convite para procederem à proposta oficial.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/12/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_12.html
Leia: Os
Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto