terça-feira, 18 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – improdutivo trabalho nos relatórios sobre a “Décima Primeira Edição do Dicionário de Novilíngua”, acaloradas discussões e nenhuma decisão; mudança da programação musical, tensão no aguardo do boletim sobre a guerra e visualização de diagrama sobre a movimentação das tropas; buscando alívio no olhar do Grande Irmão; lembrando do quarto da infância e sua precariedade num dia chuvoso e dos sacrifícios da mãe para conter o destempero do menino

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-sobre-o-fim-do.html antes de ler esta postagem:

Esta é a penúltima postagem sobre “1984”...

Ainda a respeito do trabalho de Winston, e mais especificamente sobre as discussões desenvolvidas com os outros quatro que viviam mais ou menos as mesmas condições que ele, temos de ressaltar que dificilmente chegariam a um termo a respeito do que deviam relatar.
O caso é que se a tarefa relacionada à “Décima Primeira Edição do Dicionário de Novilíngua” fosse realmente uma necessidade, o Partido não permitiria que as reuniões se sucedessem sem que nada fosse produzido. Além disso, temos de levar em conta que questões referentes à “colocação das vírgulas antes ou depois das aspas” eram desprovidas de sentido, tomavam várias horas de debate e obviamente não levavam a nenhum lugar.
Na maioria das vezes o grupo de trabalho se reunia e debandava sem nada produzir porque se chegava à conclusão de que não tinha o que fazer. Havia situações em que, pelo contrário, as reuniões eram agitadas e marcadas por calorosas discussões... Cada membro apresentava redações, “relatórios pessoais” e propostas de “longos memorandos que nunca terminavam”. Tanto falavam e defendiam suas produções textuais que os assuntos se prolongavam, revelando “sutis divergências”.
Em muitas ocasiões os desentendimentos resultavam em “ameaças de recursos à autoridade superior”, mas logo os ânimos arrefeciam e “eles ficavam em torno da mesa, entrefitando-se, com olhos defuntos, como duendes que se desvanecem ao cocoricar do galo”.
(...)
As teletelas do Castanheira silenciaram... Isso foi o suficiente para que Winston voltasse a pensar sobre o problema da guerra na África. Imaginou que dessa vez o Ministério da Paz anunciaria o boletim. Mas não foi isso o que ocorreu, pois logo o ambiente se encheu de nova programação musical.
Estava tão preocupado que passou a mentalizar o mapa do continente africano... Imaginou a movimentação das tropas em confronto como num diagrama. Visualizou duas setas, uma que apontava para o sul, negra e certamente representando o avanço dos inimigos eurasianos; outra, no sentido horizontal e avançando para o leste, era branca e devia representar os grupamentos da Oceania. Sua ansiedade pela vitória era tal que a seta branca cortava a haste da que representava os invasores.
Buscou se acalmar... E fez isso contemplando o cartaz com o enorme rosto do Grande Irmão. Inspirado pela confiança que o líder transmitia através de seu olhar, de repente se viu perguntando a respeito da “flecha branca”: seria concebível que ela nem ao menos existisse?
(...)
A tensão da espera pelo boletim sobre a guerra era grande. Todavia, ao contemplar o semblante do Grande Irmão, Winston voltou a se acalmar e bebeu mais do gin... Na sequência voltou ao exercício de xadrez e pegou o bispo branco. Experimentou um movimento que colocou o rei das peças negras em cheque.
O exercício proposto pelo periódico não exigia pressa. O que contava eram as habilidades do cálculo e da antecipação das jogadas. Ao visualizar atentamente as posições das peças percebeu que ainda não havia encontrado a solução para o desafio.
(...)
O tabuleiro podia esperar... Em algum momento faria a jogada certeira e isso colocaria fim ao exercício.
Interrompeu o jogo porque passou a se ocupar de outra lembrança... Em seu devaneio podia contemplar o quarto de sua infância. O precário cômodo surgia iluminado à vela. Uma “grande cama coberta por uma colcha branca” dominava o lugar... Ele se via “sentado no chão, sacudindo um copo de dados e rindo-se nervosamente”.
Ele e a mãe brincavam. Por isso ela estava diante dele e também acomodada no chão. O entretenimento e interação com o filho a levava a sorrir. Até onde Winston podia calcular, o dia estava chuvoso e o momento era de reconciliação. Depois de um mês ela desapareceria.
Não sabia por que a lembrança lhe viera à mente... Sabia que, pelo menos durante o jogo com a mãe, a criança se esquecia da falta de comida e da vida infeliz que levavam. Além disso, a brincadeira proporcionava uma breve reconciliação. Lembrou que por causa da chuva não pudera sair do quarto escuro e isso o irritou. A mãe sugeria a leitura para passar o tempo, mas a falta de iluminação o levava a protestar... Não podia sair como fazia habitualmente e tampouco havia o que fazer no quarto que, além de apertado e escuro, tinha goteiras.
Exigente como era, pedia comida e andava de um canto para outro... Desorganizava os objetos e dava chutes nas paredes, provocando a irritação dos vizinhos. Estes esmurravam as paredes para demonstrar sua insatisfação. E como se não bastasse seu destempero, a mãe ainda tinha de administrar o padecimento da filha, que chorava de fome e não parava de gemer.
O menino mimado trazia mais transtornos à mãe do que a pequena... Para acalmá-lo, disse-lhe que “se ficasse bonzinho” compraria um brinquedo que certamente o agradaria. Foi assim que ela resolveu sair à chuva na direção de uma pequena loja que funcionava eventualmente. É claro que lhe faltava dinheiro para o básico, mas se dispôs a gastar o pouco que tinha para conter a fúria de Winston.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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