quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – do início de “A toalha com um galo”, frio de setembro, buracos e trechos enlameados das estradas rurais, paisagem desoladora e uma difícil viagem de Gratchióvka a Múrievo; chegada às instalações da unidade hospitalar; necessidades de aquecer o corpo e de adotar postura séria para compensar a pouca idade e a falta de experiência

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras.html antes de ler esta postagem:

O primeiro dos contos de “anotações de um jovem médico” é “A toalha com um galo” e começa com a chegada do recém-formado doutor a Múrievo. O jovem doutor havia partido de Gratchióvka para dar início à residência médica no hospital do interior. Em breve daria início ao estágio de atendimento aos camponeses da localidade, assim teria a oportunidade de conhecer melhor a rotina hospitalar e colocar em prática o aprendizado acadêmico.
As péssimas condições do tempo e das estradas rurais enlameadas pela neve tornaram a viagem de pouco mais de quarenta e dois quilômetros traumática. O experiente cocheiro não conseguiu vencer a distância em menos de vinte e quatro horas... Aliás, os registros do doutor a respeito da viagem apontam que haviam deixado a capital da província “às duas da tarde do sai 16 de setembro de 1917” e chegaram diante do hospital de Múrievo “às duas e cinco da tarde” do dia seguinte.
A intensa friagem incomodava demais. Por isso o rapaz era só lamentação, pois se sentia incomodado com o enrijecimento das pernas e mãos. Naquela ocasião, a possibilidade nada absurda de ter adoecido o preocupava. Ao sentir os dedos “petrificados”, imaginou que não conseguiria movimentá-los novamente, lembrou-se do estudo a respeito da “paralisis” (paralisia) e chegou a lastimar o dia em que entregou o requerimento para a admissão na Faculdade de Medicina.
(...)
Caminhar pela relva encharcada parecia impossível. O maior problema era carregar a pesada mala, mas chegara ao ponto que não tinha como retroceder...
Apesar da espessa névoa, aos poucos conseguiu divisar o prédio branco onde funcionava o hospital de dois andares e cujas paredes descascavam... Reconheceu que o aspecto geral era satisfatório e logo concluiu que a casa pequena só podia ser do enfermeiro enquanto a maior, limpa e dotada de dois pisos, era a que o abrigaria.
Cansado da viagem e do frio de congelar, admitiu para si mesmo que chegava ao “refúgio sagrado” (neste ponto, Érika Batista destaca a referência a verso da ópera Fausto, de Charles Gounod) e reconhecia que o conforto de Moscou e seu maravilhoso teatro haviam ficado definitivamente para trás.
(...)
Mal conseguia carregar a pesada mala... Caminhando com dificuldade sobre a relva enlameada, calculou que no próximo mês o frio se tornaria ainda mais intenso, e isso exigiria agasalhos em dobro caso tivesse de retornar a Gratchióvka.
Na sequência, o jovem doutor pensou sobre a jornada que o levara ao hospital de Múrievo... A respeito da paisagem pouco teria a dizer, já que era muito monótona e silenciosa. Podia-se pensar que as terras eram desabitadas... Aqui e ali contemplavam-se os “campos roídos”, um ou outro bosque e casinhas típicas camponesas (os isbás). Havia pernoitado em Grabílovka graças à acolhida de um professor (provavelmente da universidade). A viagem noturna era simplesmente impraticável e nem se pode dizer que as condições fossem muito melhores durante o dia. Lembrou-se que o cocheiro conduzia o veículo da melhor maneira possível, todavia avançavam mais lentamente do que um caminhante. Chacoalhavam a todo momento, principalmente porque as rodas emperravam em buracos ou atolavam. Na condição de passageiro sofreu todo tipo de solavanco, e diversas vezes a pesada bagagem caiu sobre seus pés.
(...)
Tantas eram as dificuldades da chegada que o cocheiro desconfiou que o doutor não conseguisse se instalar e assumir o seu posto. Ele tomou a iniciativa de bater palmas e gritar para que viessem receber o jovem médico.
Nas vidraças da casinha do enfermeiro surgiram rostos curiosos e logo um tipo saiu para atender. Retirou o quepe em sinal de respeito e cumprimentou, “olá, camarada doutor”. Explicou que era o vigia do lugar, se chamava Egóritch e que todos aguardavam sua chegada.
O jovem médico sentiu-se aliviado ao vê-lo assumir o transporte da mala... Seguiu-o com passos claudicantes e tentando levar a mão enrijecida ao bolso para pegar moedas para uma gorjeta.
O cocheiro se foi... O jovem médico, enfim, foi entregue à equipe que já trabalhava na unidade hospitalar do pequeno povoado.
(...)
O que ele mais precisava era do calor do fogo... Tinha de se aquecer e colocar alguma ordem no raciocínio para iniciar o reconhecimento do ambiente e do pessoal. Também se sentia incomodado pelo próprio aspecto de jovem recém-formado e pela falta de experiência que a pouca idade evidenciava. Por isso desde que deixara Moscou pensou em se esforçar para transmitir a maior seriedade quando tivesse de se apresentar.
Mesmo tendo se passado muitos anos depois do ocorrido, o doutor se lembraria do modo como se apresentou assim que foi recebido pelo pessoal de Múrievo... Ninguém escondia o espanto ao ouvi-lo dizer que era o “Doutor fulano de tal” e invariavelmente perguntavam-lhe se estava falando sério, pois não podiam deixar de pensar que ainda se tratasse de um estudante.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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