terça-feira, 4 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell - o poder se exerce a partir da imposição de sofrimento e humilhação aos subjugados; o mundo que se projetava era de “medo, traição, tormento” e “cabeças pisadas”; fim dos laços familiares e afetividades, canalização de ansiedades, devoção e lealdade ao Partido e ao Grande Irmão; fim da arte, dos prazeres, das concepções estéticas e da ciência; a imagem do futuro era sombria e aos insurrectos, como Winston, ela estamparia a “bota do Partido pisando um rosto humano”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-um-debate-acerca.html antes de ler esta postagem:

O’Brien destacou que importava compreender que o “verdadeiro poder”, aquele que o Partido ambicionava sempre e desde sempre, não era o “poder sobre as coisas, mas o poder sobre os homens”.
Deixou claro que era preciso refletir sobre “como um homem afirma o seu poder sobre outro”. Perguntou ao Winston a respeito de como isso se processa. O rapaz pensou um pouco e respondeu que isso ocorre na medida em que o primeiro impõe sofrimento ao outro.
A resposta não gerou qualquer advertência de O’Brien. Pelo contrário... Ele não só concordou como a completou dizendo que “a obediência não basta”. Justificou que o sofrimento que se inflige àquele que se pretende dominar garante que a vontade do dominador seja obedecida. Em outras palavras, a partir da “dor e humilhação” impostas, o outro sufocará as próprias vontades para devotar lealdade ao que o oprime.
O membro do Partido Interno deixou claro que “o poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender”. Na sequência perguntou ao rapaz se ele já podia perceber o “tipo de mundo” que estavam criando... Algo que nada tinha a ver com o que utopistas e reformadores do passado pensaram e planejaram. Enquanto estes se basearam em “estúpidas doutrinas” que vislumbravam uma realidade fantasiosa, o Partido pretendia impor um panorama marcado pelo “medo, traição e tormento”, em que aos homens não restaria outra opção a não ser “pisar ou ser pisado”, algo cada vez mais marcado pela falta de piedade.
Explicou ainda que ao Partido só havia um sentido para o progresso, o de aumentar a dor no cotidiano das gentes. Enquanto os antigos projetavam sociedades “fundadas no amor ou na justiça”, o mundo da Oceania só podia se basear no ódio e nas sensações de “medo, fúria, triunfo e auto-degradação”. Ninguém poderia esperar nada diferente do aniquilamento de toda forma de pieguice.
O modo de pensar e hábitos anteriores ao triunfo do Partido estavam sendo eliminados... Como o próprio Winston podia conferir, os laços familiares de outrora foram destruídos. Os relacionamentos entre pais e filhos, esposa e marido, deixaram de se basear na confiança e instinto de conservação.
(...)
Ainda a respeito do mundo baseado na imposição do poder fundamentado na dor e na humilhação, O’Brien ressaltou que futuramente não haveria relações de amizade ou vida conjugal... Chegaria o tempo em que as crianças seriam retiradas da família logo que nascessem, assim “como se tiram os ovos da galinha”.
A procriação passaria a sofrer uma fiscalização mais específica do Partido e se tornaria uma formalidade semelhante às “renovações dos talões de racionamento”. A vida sexual deixaria de ser definida pelo foro particular, pois o regime pretendia exercer rígido controle e já havia definido equipes de neurologistas para a pesquisa com vistas à “abolição do orgasmo”.
A intenção era a de canalizar ansiedades, devoção e lealdade unicamente para o Partido. O amor seria completamente desconhecido. Ninguém mais seria tomado de qualquer tipo afetividade em relação a outros. Apenas o Grande Irmão seria idolatrado e amado...
Como se vê, a concepção de poder que se relacionava ao Partido era muito mais complexa (e dramática) do que se podia imaginar... O’Brien ainda falou algo a respeito da eliminação da alegria nas relações humanas. Não haveria riso! As manifestações de felicidade se dariam apenas nas ocasiões marcadas pelas vitórias sobre os inimigos.
Nada de arte, literatura ou ciência... Aliás, a partir do momento em que o Partido efetivasse por completo seu projeto de poder, a ciência perderia a razão de existir. Ninguém se interessaria em “aproveitar o bom da vida” ou se dedicaria a tornar belas as coisas, até porque isso não seria possível... A curiosidade seria eliminada e, além disso, “beleza e feiura” deixariam de ser conceitos distintos e antagônicos.
(...)
Uma vida sem prazeres... Era isso o que O’Brien queria dizer. Apenas o Partido seria objeto do fanatismo. Seu poder é algo inebriante e quanto, mais o detém, mais o deseja. Apesar disso, o exercício da força é sutil. Paulatinamente o regozijo que se experimenta é apenas os das conquistas de governo marcadas, ainda que subliminarmente, pela “sensação de pisar um inimigo inerme”.
(...)
Sempre encarando Winston, O’Brien advertiu que se ele quisesse pensar coerentemente o futuro devia imaginar “uma bota pisando um rosto humano”, e essa imagem era “definitiva e para sempre”.
Parou de falar e provavelmente esperava que o rapaz se manifestasse a respeito de tudo o que ouvira. Mas ele nada disse e manteve-se encolhido na cama.
O que poderia dizer? Resignado, percebia o coração cada vez mais gelado.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas