quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – pânico diante da gaiola das ratazanas se aproximando da cabeça; O’Brien explica o funcionamento do dispositivo que liberaria os roedores diretamente para o rosto de Winston; lenta aproximação para provocar pavor maior diante da possibilidade de ter os olhos e as bochechas rasgadas pelos bichos repugnantes; do fundo do desespero, a iniciativa de gritar o nome de um substituto; por um triz, e apto a devotar amor e fidelidade ao grande líder

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-palestra-respeito.html antes de ler esta postagem:

Os guinchos das ratazanas começaram a chegar aos ouvidos de Winston... Eram apavorantes e, talvez porque quisesse a todo custo anulá-los, inconscientemente calculava que ainda estavam distantes. Mas na realidade a gaiola fora colocada bem à sua frente, e tudo indicava que os bichos estavam ainda mais vorazes porque não conseguiam se atracar devido à separação metálica.
O’Brien levantou a gaiola e manipulou algo nela que a fez emitir um estalido. Winston não conseguia conter o pavor e passou a se esforçar para se libertar da cadeira, mas todo o seu corpo estava preso a ela. Escandalizado assistiu seu algoz aproximar ainda mais a peça metálica de sua cabeça imobilizada. Ele fez questão de lhe explicar que havia apertado a primeira das alavancas.
Ao revelar o que havia feito a gaiola emitir o estalido, O’Brien sugeriu que o rapaz podia entender como ela funcionava... A “máscara de esgrima” se adaptava perfeitamente à sua cabeça de tal modo que não sobraria nenhum espaço que pudesse servir de “saída”. Esclareceu que havia outra alavanca que, quando acionada, faria correr a portinhola que impedia a passagem das ratazanas... Uma vez liberadas, se lançariam contra seu rosto.
O’Brien quis saber se Winston já havia visto os ratos saltando. Ele devia saber que os bichos avançariam ferozmente e o devorariam. Talvez atacassem primeiro os olhos, mas podiam se interessar pelas bochechas que não resistiriam às dentadas que logo chegariam à sua língua.
(...)
A gaiola estava tão próxima que Winston passou a ter certeza de que os guinchos que ouvia vinham de cima de sua cabeça. Não podia fazer nada para se defender. Então procurou evitar o pânico e procurou pensar sobre alguma forma de escapar daquele ataque horrendo.
O problema é que já podia sentir o cheiro dos roedores e isso provocou uma náusea tão agressiva que suas vistas se escureceram. Perdeu o sentido do que estava vivenciando e começou a gritar. Essa atitude que aparentemente não o levaria a lugar nenhum deu sentido à decisão de exclamar um nome. Sim, diria o nome de outra pessoa que merecesse mais do que ele passar pelo suplício da gaiola das ratazanas.
Ele sabia que a alguns centímetros de seu rosto estava a portinhola a impedir que os roedores avançassem. Os bichos medonhos que haviam crescido nos imundos esgotos pareciam saber o que se sucederia, tanto é que um pulava afoitamente e o outro cheio de escamas fungava e empurrava o metal com as patas.
O rapaz já conseguia distinguir os dentes proeminentes e amarelados do bicho pestilento. Por isso voltou a sentir a visão escurecer... Pensava que sabia o que devia fazer, mas o pânico o impedia de se manifestar incisivamente.
Não podemos duvidar que O’Brien já soubesse o que se passava em sua mente e talvez fosse por isso que ele mais o atazanou ao dizer que aquele expediente era um dos castigos mais comuns na China dos tempos imperiais... Falava como se estivesse dando prosseguimento à palestra ao público invisível, mas não descuidava de fazer avançar a gaiola até tocar o rosto do infeliz.
Ao Winston não havia outra saída a não ser agarrar-se à esperança... Tinha de gritar o nome de “alguém que merecia mais do que ele” aquela medonha punição. A esperança era mínima e podia dar em nada, todavia esforçou-se o máximo que conseguiu para extrair da confusão de sua mente o nome de quem deveria substitui-lo. Enquanto pressentia a portinhola se abrir para o avanço mortal das ratazanas, gritou loucamente ao O’Brien para que submetesse Júlia ao castigo.
Repetiu várias vezes a mesma frase e emendou que não se importava o que ocorresse a ela. Podiam arrancar-lhe a face e acabar com seus ossos. Mas não com ele. “Comigo não!” era o que gritava insistentemente. Preso à cadeira, não tinha qualquer mobilidade que pudesse proporcionar-lhe uma escapada... Em seu devaneio, sentia-se caindo e atravessando o assoalho, as grossas paredes até ultrapassar a fundação do prédio e atingir as profundezas da terra, os oceanos e, desde as águas até a atmosfera e o “exterior, no vácuo entre as estrelas – sempre longe, longe, longe dos ratos”.
O pânico o levara a muitos “anos-luz”, mas O’Brien estava bem ali diante da cadeira que o prendia dos pés à cabeça. E junto a mesma ainda estava a gaiola com as ratazanas. Tudo parecia perdido... Winston ouviu novo estalido metálico que bem podia ser o da liberação dos roedores.
Mas não foi isso o que ocorreu... O novo estalido era porque O’Brien havia trancado a portinhola para não mais abri-la.

(...)

Então foi isso... Winston teve de retornar à sala 101 e certamente isso rendeu novas sessões marcadas por interrogatórios, torturas e injeções de psicotrópicos. Mais uma vez ficamos sem saber a respeito do quanto tempo permaneceu na “reeducação”.
Infere-se que o processo tenha sido mais célere devido às muitas informações acumuladas sobre o preso político, além disso, a ciência desenvolvida pelo Partido deve ter sido essencial para que chegassem à última sessão que o colocara diante do maior de seus pavores. Pelo visto o horror o libertou das antigas “deficiências sentimentais” para que passasse a devotar amor e fidelidade ao Grande Irmão.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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