Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-maximas-do.html antes
de ler esta postagem:
Exercitar e recorrer regularmente ao “mecanismo
do crimedeter” não era tão simples. As práticas exigiam raciocínio aguçado e improvisação.
Além disso, Winston não se sentia inteiramente apto a compreender as equações
como a do “dois e dois são cinco”.
Sua mente devia se
adaptar a mecanismos bruscos de análise. É que, assim como devia desenvolver a
habilidade para raciocínios lógicos, também precisava anular a própria
consciência para admitir as imposições desprovidas de qualquer lógica. Em outras
palavras, “a estupidez era tão necessária quanto a inteligência, e igualmente
difícil de se conquistar”.
(...)
Havia os momentos em que parte de seus pensamentos devotavam-se a
refletir sobre o momento em que o matariam. A certeza que tinha era a de que mais
cedo ou mais tarde isso ocorreria. Lembrava-se das palavras de O’Brien que
dizia que “tudo dependia do próprio sentenciado”. Isso à parte, estava certo de
que nada poderia fazer para antecipar ou retardar a execução. Então a situação
permanecia como que suspensa e o amargo fim poderia ocorrer em dez anos ou dez
minutos.
Sempre
poderiam se decidir por fazê-lo cumprir mais algum tempo em uma cela totalmente
isolada ou enviá-lo a um campo de trabalhos forçados. Também poderiam soltá-lo
por algum tempo para capturá-lo mais tarde. Ele bem sabia que isso acontecia
com frequência.
Ao pensar sobre essas
possibilidades, considerava que não poderia se espantar se o prendessem
novamente para repetir todo processo pelo qual havia passado... A certeza que
tinha era a de que o executariam a qualquer momento, mas não havia como
imaginar quando ocorreria.
Apesar
de nunca ter ouvido falar a respeito, tinha por certo que a execução se dava
durante a noite e com um tiro na nuca enquanto se caminhava pelo “longo
corredor” numa das muitas transferências de celas.
(...)
Aconteceu que certa
vez teve um sonho que envolveu esses e outros pensamentos. Foi um “sonho
estranho” no qual mergulhou profundamente porque se via feliz... Caminhava pelo
corredor crente de que tudo se resolvera e que, com o caso devidamente
esclarecido, a tão esperada “reconciliação” havia chegado. Seria alvejado pelas
costas e seria o fim.
Nada de “dúvidas,
discussões, dor ou medo”. Seu organismo estava totalmente restabelecido e
forte... Seus passos eram decididos e alegres por saberem que o levavam a um
ambiente ensolarado.
Os sonhos são assim mesmo. Em vez dos longos e iluminados corredores do
Ministério do Amor, caminhava por uma passagem ensolarada que parecia não ter
fim... O lugar não podia ser outro além da “Terra Dourada” e ele até podia
reconhecer os atalhos marcados pela presença de agitados coelhos. A relva e os suaves
raios solares lhe eram conhecidos... E não é que mais à frente podia ver os
ulmeiros balançando ao sabor do vento? Certamente depois poderia contemplar o
riacho carregado de peixes concentrados nas águas à sombra dos chorões.
Não podia evitar... O sonho era perfeito e só faltava algo para se
tornar completo... De um momento para outro se viu gritando. Estava suado e chamava
por Júlia... “Júlia! Júlia! Júlia, meu amor! Júlia!”. Completamente alucinado,
tinha a sensação de que estava com ela e, mais que isso, que a carregava dentro
de si e que a amava mais que nunca.
(...)
O sonho trouxe-lhe a convicção de que a amada
estava viva, que precisava de ajuda e queria encontrá-lo. Mas ao despertar e sentar-se
na cama percebeu que no momento era ele que acabava de se meter em confusão.
Tentou se recompor para pensar na situação. Havia cometido a estupidez de
gritar o nome de Júlia e deixou escapar sensações proibidas enquanto dormia.
A fraqueza de
espírito o levara ao sonho, e este certamente resultaria em consequências
drásticas à sua punição. Era o caso de começar a imaginá-las, mas não teve muito
tempo para isso... É que logo ouviu as pesadas passadas de botas que se aproximavam.
Já que não preservara o acordo, traziam-lhe o castigo... Estava claro que
entenderiam que ele “obedecia ao Partido, mas ainda o odiava”, e tudo indicava
que havia chegado até ali porque conseguira ocultar “a mente herética sob a
aparência de conformidade”.
Sua exaltação durante o sonho representava um recuo drástico... Sua
mente não era confiável, até porque, pelo visto, tentara manter intacta sua
devoção à antiga paixão. E o pior era o fato de ele saber que sua persistência
o induzia ao erro, mesmo assim “preferia estar errado”.
(...)
Winston
pensava a respeito das conclusões que os agentes podiam ter tirado a respeito
do episódio... Não havia dúvida de que seu grito havia sido uma “confissão”.
Pelo visto o fariam recomeçar o processo no Ministério do Amor, e dessa vez poderia
levar muito mais tempo.
Instintivamente
levou a mão ao rosto e pela primeira vez pôde fazer um reconhecimento da “nova
fisionomia”. Sentiu “sulcos profundos, zigomas salientes, nariz mais chato” e o
par de próteses dentárias.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto