Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-restauracao.html antes
de ler esta postagem:
Winston notou a própria recuperação e em seu
exame de consciência passou a admitir que havia agido de modo irresponsável ao
se rebelar contra o Partido. Ele e Júlia fizeram mal... A capitulação era
natural e, pelo menos de sua parte, desde os acertos para a filiação junto à
“Fraternidade” no apartamento de O’Brien, já deviam saber que estavam ingressando
numa aventura inútil, tresloucada e que tinham de recuar do impulso rebelde.
Como vimos, pegou a
pequena lousa e o lápis, pois sentia que devia dar prosseguimento ao processo
conforme O’Brien havia adiantado... Articularia algumas reflexões em torno do
aprendizado que obtivera e isso faria parte de sua “reeducação”. Devia estar
faltando bem pouco para começar a pensar como o Partido.
Percebeu que já não tinha muito jeito para lidar com o lápis, mesmo
assim rabiscou “pensamentos que lhe vinham à cabeça” e foi assim que escreveu
em letras garrafais e tremidas: “Liberdade é escravidão”; “Dois e dois são
cinco”. Depois disso, parou por breve instante ao sentir que a concentração lhe
escapava... Sabia que devia completar com outra sentença, mas não conseguia
formatá-la. A frase não se revelava espontaneamente, mas aos poucos ela surgiu
em seu raciocínio graças ao seu esforço de reflexão. E foi graças a isso que a
escreveu mais abaixo: Deus é poder”.
(...)
As
frases já eram uma indicação de sua capitulação/reeducação:
“Aceitava tudo. O passado
era alterável. O passado nunca fora alterado. A Oceania estava em guerra com a Lestásia.
A Oceania sempre estivera em guerra com a Lestásia. Jones, Aaronson e
Rutherford eram réus dos crimes imputados. Nunca vira a fotografia que provava
sua inocência”.
Aliás,
a respeito do caso dos três condenados, admitia sem dificuldades que a tal
prova jamais existira e que na verdade ele mesmo a inventara. Pensou que houve
momentos em que havia se lembrado de certas situações relacionadas, mas “sabia”
que elas eram contraditórias, “falsas lembranças, produtos da alucinação”.
De certa forma, o caso
era simples... Basicamente uma questão de aceitar “as coisas como elas são”,
bastava se render ao todo poderoso Partido. Afinal não havia como “nadar contra
a corrente por mais esforços que se fizessem”. Por que problematizar quando podia
“virar-se a favor do fluxo e prosseguir conforme a corrente”?
No final das contas,
não havia motivo para problematizações... A situação estava normal como sempre
estivera. Ele nem mesmo saberia explicar por que estava passando por aquele
programa de reabilitação! Havia se rebelado contra o sistema? Com qual
finalidade?
(...)
Não conseguia obter respostas a essas questões porque admitia sem
traumas que “leis da natureza ou lei da gravidade” não passavam de tolices.
Tudo podia ser verdade, ou deixar de ser conforme as determinações do Partido.
O’Brien não dissera que “poderia flutuar como uma bolha de sabão”? Pois sim...
Winston refletiu que bastava o outro pensar que flutuava ao mesmo tempo em que
ele próprio pensasse que o via a flutuar. Simples assim.
Por um instante algo no fundo de sua consciência pareceu emergir para
advertir que a ideia da flutuação não acontecia de fato. Seus atores é que
imaginavam que tudo se processava e, desse modo, o evento todo não passava de
uma “alucinação”. Mas sufocou esse pensamento para não se perder na falta de
lógica.
Isso não seria tarefa das mais fáceis. Persistia
a consciência de que havia “um mundo real onde coisas reais acontecem”. Todavia
isso era questionável, e teria de se esforçar mais para admitir... E tudo
porque o indivíduo adquire conhecimento a partir daquilo que processa em sua
mente, sendo assim, reconhecendo-se que “tudo o que acontece, tem sua razão de
ser porque se processa na cabeça”, a existência do “mundo externo” seria altamente
questionável.
Poderia pensar que “o
que acontece em todas as mentes, de fato acontece”. Mas isso ainda mais
comprometeria a reabilitação. Logo notou que eliminou a “falácia” sem grande
esforço.
(...)
Acontece que seus pensamentos sofriam uma autocensura e ao mesmo tempo
estabeleciam que aquelas ideias não deviam ter sido despertadas. Em outras
palavras, “o cérebro devia formar um ponto cego sempre que se apresentasse um
pensamento perigoso”. E isso precisava ocorrer automaticamente,
instintivamente.
Era
para isso que havia o mecanismo do “crimedeter”, no qual ele devia se
exercitar. Era graças à metodologia que o indivíduo plenamente ajustado ao sistema
podia ouvir o Partido dizer que “a Terra é plana” ou que “o gelo é mais pesado
que a água” sem levar em conta as contradições.
Na
verdade, através do “crimedeter”, a reflexão sobre a falta de lógica embutida
nas máximas do Partido tornava-se nula. No limite, aceitava-se que elas eram incompreensíveis.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-das-dificuldades.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto