segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell - máximas do Partido grafadas na pequena lousa de Winston; com a capitulação/reeducação adotava-se as “verdades” outrora inconcebíveis por quem se guiava pela consciência crítica; da comodidade de “virar-se a favor do fluxo” em vez de “nadar contra a corrente”; o “crimedeter” enquanto metodologia para a admissão das imposições carregadas de falta de lógica

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-restauracao.html antes de ler esta postagem:

Winston notou a própria recuperação e em seu exame de consciência passou a admitir que havia agido de modo irresponsável ao se rebelar contra o Partido. Ele e Júlia fizeram mal... A capitulação era natural e, pelo menos de sua parte, desde os acertos para a filiação junto à “Fraternidade” no apartamento de O’Brien, já deviam saber que estavam ingressando numa aventura inútil, tresloucada e que tinham de recuar do impulso rebelde.
Como vimos, pegou a pequena lousa e o lápis, pois sentia que devia dar prosseguimento ao processo conforme O’Brien havia adiantado... Articularia algumas reflexões em torno do aprendizado que obtivera e isso faria parte de sua “reeducação”. Devia estar faltando bem pouco para começar a pensar como o Partido.
Percebeu que já não tinha muito jeito para lidar com o lápis, mesmo assim rabiscou “pensamentos que lhe vinham à cabeça” e foi assim que escreveu em letras garrafais e tremidas: “Liberdade é escravidão”; “Dois e dois são cinco”. Depois disso, parou por breve instante ao sentir que a concentração lhe escapava... Sabia que devia completar com outra sentença, mas não conseguia formatá-la. A frase não se revelava espontaneamente, mas aos poucos ela surgiu em seu raciocínio graças ao seu esforço de reflexão. E foi graças a isso que a escreveu mais abaixo: Deus é poder”.
(...)
As frases já eram uma indicação de sua capitulação/reeducação:

                   “Aceitava tudo. O passado era alterável. O passado nunca fora alterado. A Oceania estava em guerra com a Lestásia. A Oceania sempre estivera em guerra com a Lestásia. Jones, Aaronson e Rutherford eram réus dos crimes imputados. Nunca vira a fotografia que provava sua inocência”.

Aliás, a respeito do caso dos três condenados, admitia sem dificuldades que a tal prova jamais existira e que na verdade ele mesmo a inventara. Pensou que houve momentos em que havia se lembrado de certas situações relacionadas, mas “sabia” que elas eram contraditórias, “falsas lembranças, produtos da alucinação”.
De certa forma, o caso era simples... Basicamente uma questão de aceitar “as coisas como elas são”, bastava se render ao todo poderoso Partido. Afinal não havia como “nadar contra a corrente por mais esforços que se fizessem”. Por que problematizar quando podia “virar-se a favor do fluxo e prosseguir conforme a corrente”?
No final das contas, não havia motivo para problematizações... A situação estava normal como sempre estivera. Ele nem mesmo saberia explicar por que estava passando por aquele programa de reabilitação! Havia se rebelado contra o sistema? Com qual finalidade?
(...)
Não conseguia obter respostas a essas questões porque admitia sem traumas que “leis da natureza ou lei da gravidade” não passavam de tolices. Tudo podia ser verdade, ou deixar de ser conforme as determinações do Partido. O’Brien não dissera que “poderia flutuar como uma bolha de sabão”? Pois sim... Winston refletiu que bastava o outro pensar que flutuava ao mesmo tempo em que ele próprio pensasse que o via a flutuar. Simples assim.
Por um instante algo no fundo de sua consciência pareceu emergir para advertir que a ideia da flutuação não acontecia de fato. Seus atores é que imaginavam que tudo se processava e, desse modo, o evento todo não passava de uma “alucinação”. Mas sufocou esse pensamento para não se perder na falta de lógica.
Isso não seria tarefa das mais fáceis. Persistia a consciência de que havia “um mundo real onde coisas reais acontecem”. Todavia isso era questionável, e teria de se esforçar mais para admitir... E tudo porque o indivíduo adquire conhecimento a partir daquilo que processa em sua mente, sendo assim, reconhecendo-se que “tudo o que acontece, tem sua razão de ser porque se processa na cabeça”, a existência do “mundo externo” seria altamente questionável.
Poderia pensar que “o que acontece em todas as mentes, de fato acontece”. Mas isso ainda mais comprometeria a reabilitação. Logo notou que eliminou a “falácia” sem grande esforço.
(...)
Acontece que seus pensamentos sofriam uma autocensura e ao mesmo tempo estabeleciam que aquelas ideias não deviam ter sido despertadas. Em outras palavras, “o cérebro devia formar um ponto cego sempre que se apresentasse um pensamento perigoso”. E isso precisava ocorrer automaticamente, instintivamente.
Era para isso que havia o mecanismo do “crimedeter”, no qual ele devia se exercitar. Era graças à metodologia que o indivíduo plenamente ajustado ao sistema podia ouvir o Partido dizer que “a Terra é plana” ou que “o gelo é mais pesado que a água” sem levar em conta as contradições.
Na verdade, através do “crimedeter”, a reflexão sobre a falta de lógica embutida nas máximas do Partido tornava-se nula. No limite, aceitava-se que elas eram incompreensíveis.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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