Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-exercicio.html antes
de ler esta postagem:
Winston estava no Café Castanheira... Na solidão
da mesa que habitualmente ocupava, bebia Gin Vitória, resolvia um exercício de
xadrez e ouvia as músicas metálicas das teletelas enquanto aguardava com
ansiedade o boletim do Ministério da Paz com informações a respeito da frente africana,
onde os inimigos eurasianos avançavam perigosamente.
A possibilidade de a
Oceania ser derrotada na África e perder o controle do continente o angustiava
enquanto uma série de sentimentos e episódios recentes invadiam suas reflexões...
Talvez buscando agarrar-se às convicções apreendidas com o processo pelo qual
passou no Ministério do Amor, movimentou o dedo indicador na poeira da mesa
para imprimir que “2+2=5”. De resto, tudo o que lhe vinha à mente era desconexo
e naturalmente marcado por sua recente condição de reabilitado... Era evidente
que “algo estava morto em seu peito; queimado; cauterizado”.
(...)
Estamos no ponto em que se recordava de um encontro com Júlia... Ele
passou por ela enquanto ambos caminhavam pelo parque. Notou suas muitas
mudanças desde que haviam sido capturados e percebeu que ela o evitou, mesmo
assim tratou de segui-la até que o aceitasse na caminhada lado-a-lado.
Depois
não tardou para que se instalassem “no meio de uma touceira de arbustos
desfolhados”. Não chegaram ali para se esconder, pois não havia motivo para
isso, ou para se abrigarem do vento, já que a folhagem era parca. Ademais o
melhor que podiam fazer era continuar a caminhada para espantar o frio
rigoroso.
Não havia teletelas
no lugar, mas provavelmente existissem microfones camuflados em alguma parte. Ele
arriscou passar o braço pela cintura da jovem. Sim, foi arriscado porque podiam
ser vistos... Em nenhum momento acreditou que isso acontecesse ou que tivesse
qualquer importância, inclusive, se quisessem, poderiam se deitar na relva para
se envolverem ainda mais.
No
momento em que pensava sobre essas coisas na mesa do Castanheira, Winston
sentiu arrepiar-se. Ele lembrou que Júlia não esboçou reação ao toque de seu
braço e tampouco tentou afastá-lo... A aproximação foi suficiente para notar o
que havia de diferente nela. Além do rosto pálido, percebeu uma grande cicatriz
que lhe sulcava “a testa e a fonte”. O corte era imenso, e só não podia ser
totalmente visualizado porque o cabelo escondia uma parte.
Mas o que mais chamou
sua atenção foi o quanto a cintura de Júlia havia se tornado maior e todo o
corpo se enrijecera. Logo que o notou, lembrou-se da ocasião em que ajudara a
deslocar um cadáver depois de uma explosão provocada por “bomba-foguete”. O
corpo era muito pesado e rígido como pedra. Pois era essa mesma a impressão que
o corpo da moça lhe passava.
Não era para menos.
Podia imaginar um pouco do tormento ao qual a submeteram... Toda ela só podia
estar mudada, e sem dúvida a textura da pele enrijecida era resultado dos
suplícios. Ele sequer tentou beijá-la e a rigor nem chegaram a conversar
enquanto estiveram na touceira desguarnecida. Voltaram a caminhar e passaram
pelo portão que dava acesso ao arranjo dos arbustos. Foi só quando já estavam na
saída que ela o encarou, e seu olhar foi “de desprezo e repugnância”.
Sobre a reação da moça, Winston pensou se se devia a algum ressentimento
pelo que haviam vivido enquanto namoravam ou se era por causa de sua aparência
mais inchada e a água que lhe brotava dos olhos em decorrência da friagem. Sentaram-se
em bancos de ferro mantendo certa distância. Ela acomodou o pé na sandália e
desse modo deixou os dedos à mostra... Ele viu que também seus pés estavam “mais
largos”, mas achou deselegante e não quis falar a respeito das mudanças que
vinha observando.
De repente, Júlia resolveu falar que o havia traído. Disse isso sem perder
tempo com detalhes... Winston respondeu que também a havia traído e ela o olhou
com repugnância mais uma vez. Como que a se justificar, falou que eles (os
agentes de repressão) ameaçavam “com coisas que não se pode aguentar, não se
pode nem pensar”. Emendou que naqueles casos só restava implorar que não
fizessem aquilo e, se fosse o caso, que fizessem “com outra pessoa, com Fulano
e Sicrano”.
Júlia falava como se estivesse fazendo uma
confissão... Relatou que depois da súplica desesperada podia “fingir” que se
recorria ao “estratagema de implorar que fizessem a outro”. Podia-se buscar
consolo na ideia de que aquilo não era sério. Mas sempre ficava o peso na
consciência, pois sabia-se que no momento mesmo da tortura mais radical fala-se
seriamente, já que não se vislumbra nenhuma outra forma de se salvar. Daí não
havia outra conclusão a se tirar senão a de que no fundo queremos ficar livres
do tormento e que ele seja aplicado a outro... No fundo “só nós temos
importância”.
Winston
não só concordou como repetiu a última frase de Júlia... Ela acrescentou que
depois que passamos por este tipo de trauma deixamos de nutrir os mesmos
sentimentos pela pessoa que sugerimos sofrer em nosso lugar.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-sobre-o-fim-do.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto