sábado, 15 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – exercício proposto pelo periódico, “em dois lances as brancas vencem o jogo”; reflexões sobre o constante “triunfo de brancos sobre negros” e de “Bem sobre o Mal”; preocupações em relação aos avanços inimigos na África e consequências nefastas; resolução do exercício de xadrez não avança em meio aos múltiplos sentimentos confusos e à convicção de que “2+2=5”; recordando um inesperado encontro com Júlia

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-winston-no-cafe.html antes de ler esta postagem:

A tarefa que se apresentava no momento estava no tabuleiro e nas peças posicionadas de acordo com o exercício proposto pelo “Times”. Havia certa complexidade ali... Dois bispos no final da partida, “as brancas jogariam; mate em dois lances”.
Winston voltou o olhar para o cartaz do Grande Irmão, suspirou e pensou no desfecho costumeiro... “As brancas sempre matam”. E vencem! Essa era a praxe em todo exercício proposto... As peças pretas “jamais venciam”. Aquilo só podia ser um “símbolo do triunfo eterno, invariável, do Bem sobre o Mal”.
A enorme imagem do Grande Irmão parecia confirmar que aqueles pensamentos estavam adequados... “As brancas sempre matam”. E vencem. Desde a teletela ouviu-se uma voz grave que anunciava que em breve seria comunicada uma notícia da mais alta importância... Que ninguém a perdesse.
Na sequência a música metálica voltou a preencher a atmosfera. Winston pareceu ofegar... Por volta das três e meia conheceria as novidades a respeito da guerra. Só podia ser isso... Em seu íntimo não antevia boas notícias. Pelo contrário! Sentia-se amargurado com a perspectiva e “esmagadora derrota na África”.
Não por acaso começou a visualizar as ações em suas reflexões... De um lado, o enorme exército dos eurasianos a realizar manobras depois de ultrapassar a “inviolável fronteira”. Em colunas disciplinadas como a de saúvas podiam provocar todo tipo de destruição. Era angustiante saber que havia como barrá-los na costa ocidental e ao mesmo tempo pressentir que isso não ocorreria.
(...)
Em sua mente desenhou-se a costa africana... Porém sua atenção voltara-se ao tabuleiro e a uma casa específica onde acabara de colocar o bispo branco. Aquela podia mesmo ser a jogada certa... Acontece que as reflexões sobre os acontecimentos na África não o deixavam. Por isso “visualizava” tropas inimigas avançando velozmente para o sul... E mais! Sentia que em algum ponto da retaguarda encontrava-se um grupamento capaz de cortar as comunicações dos que invasores. O interessante era que, ao “visualizar” os que avançavam, parecia “dar existência à outra força” e concluía que esta devia agir o quanto antes para evitar que conquistassem o continente.
A conquista da África pelos eurasianos poderia trazer sérias consequências... Ao estabelecer total controle de “campos de pouso e bases de submarinos no Cabo” conseguiriam dividir a Oceania, teriam reais condições de derrotá-la e quebrar sua Economia. Certamente uma nova ordem se elevaria e muito provavelmente isso liquidaria o Partido.
Winston respirou fundo. Não podia afundar no pessimismo e por isso devia superá-lo. O caso é que o anúncio oficial do Ministério da Paz poderia atrasar... Então tratou de refletir sobre outros sentimentos. E eram tantos que não podia definir qual se sobressaía e quais apenas vagamente se evidenciavam. Por isso voltou novamente a atenção para o tabuleiro e recolocou o bispo branco na casa anterior.
Todavia não havia modo de se concentrar no problema proposto pelo exercício do periódico... Seus pensamentos “vagueavam” e sequer percebeu que movimentava o dedo sobre o pó da mesa de modo a rabiscar “2+2=5”.
(...)
Pensou em Júlia... Lembrou-se de certas palavras que dissera a ele, “não podem ver dentro de ti”. Ele havia aprendido que “podiam entrar na pessoa”, e aprendera O’Brien o instruíra sobre a máxima de que tudo o que sucedia ao processado no Ministério do Amor seria “para sempre”.
Ele podia confirmar... O homem sempre esteve com a razão. De modo algum a pessoa conseguia se recuperar de certos atos. Um de seus sentimentos indicava que “algo estava morto em seu peito; queimado, cauterizado”. Pelo menos no momento não tinha como sistematizar os juízos que lhe ocorriam.
Lembrou-se que num dado momento depois de sua liberação topou com Júlia... Os dois se falaram, pois se sentiam seguros para isso e não viam qualquer perigo. O caso é que tinham certeza de que a repressão não tinha mais qualquer interesse por suas ações. Certamente tinham convicção de que o tratamento pelo qual passaram havia sido eficaz.
De tal modo estiveram à vontade na ocasião que até podiam ter acertado outros encontros se assim o desejassem. Encontraram-se por acaso... Não havia nada que pudesse justificar um programa daqueles e, por estarem em março, o gramado estava ressecado e sequer havia flores nas alamedas. O dia não era dos mais agradáveis, mas aconteceu de caminharem pelo parque no mesmo horário.
Winston levava no rosto as marcas da friagem e caminhava apressadamente... De repente viu que na direção contrária à que ele fazia vinha Júlia. Mesmo à distância percebeu as mudanças em seu físico e o quanto o processo devia ter sido mais traumático para ela.
Passaram um pelo outro... Ela certamente o reconheceu, mas de início não esboçou qualquer gesto. Ele decidiu segui-la, e fez isso “sem grande interesse” ou preocupação. Assim que a alcançou, percebeu que seus passos revelavam uma tentativa de escapar de qualquer assédio. Depois de certo trecho, Júlia continuou a caminhada em silêncio admitindo que ele seguisse ao seu lado.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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