terça-feira, 11 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell - não bastava pensar direito, era preciso sentir e sonhar direito; o sonho e o despertar atordoado certamente retardariam a execução; os agentes de repressão chegavam à sala enquanto Winston intuía a respeito do fracasso do processo e da derrota do sistema no caso de o sentenciado manter o segredo de ódio aos opressores; o Grande Irmão e sua enorme face, o que podia haver de mais imundo e horrendo; de volta à sala 101 e reinício das sessões para a correção final

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-das-dificuldades.html antes de ler esta postagem:

Quis fazer o reconhecimento da fisionomia para tentar descobrir como poderia dar ao rosto uma aparência que o poupasse da repressão. Evidentemente sabia que não era possível ludibriar os agentes apenas com esse expediente. O episódio do sonho serviu para ensinar-lhe que os segredos mais profundos deviam ser “escondidos” também da consciência.
Winston sabia que tinha esse segredo? É difícil responder... Pelo menos a partir do que pudemos avaliar de sua “reeducação” somos levados a crer que não soubesse. Concluiu que talvez não conhecesse tudo o que a própria mente trazia. De fato, por tudo o que havia passado, era normal que isso viesse a ocorrer.
Não bastava “pensar direito”, precisava “sentir direito e sonhar direito”. Precisava conhecer o ódio que carregava em seu íntimo e escondê-lo. Tal sentimento só podia ter sua origem em sua existência anterior à prisão, e por isso mesmo devia ser mantido “como um corpo estranho que fosse parte de seu organismo e, no entanto, desligado do resto do corpo”.
O episódio do sonho e seu despertar atordoado, denunciador de sua farsa, só podia complicá-lo. As reflexões a respeito da execução, que devia ocorrer no corredor iluminado do Ministério do Amor e poderia estar próxima, teriam de levar em consideração mais essa confissão que certamente retardaria ainda mais o processo.
Não fosse o sonho e o despertar atordoado teriam lhe dado o tiro que destruiria seu cérebro... Se isso ocorresse, teríamos de admitir que as máximas prenunciadas por O’Brien a respeito da necessária “recuperação” do criminoso político antes da execução não teriam se cumprido e, desse modo, “o pensamento herético ficaria impune, sem arrependimento, fora do alcance de seu poder”. E mais... Se, por acaso, matassem Winston antes de descobrirem que ele “guardava segredos”, teriam falhado. O sistema não podia admitir que o sentenciado morresse odiando os que o oprimiam. Isso equivalia a dizer que “morria-se livre”.
(...)
O sonho havia revelado que ele ainda amava Júlia e a desejava. Isso representou a demolição da “disciplina intelectual” que, ao que tudo indica, O’Brien dava por certa.
Winston parecia acreditar que estava “recuperado” e apto para a execução. No entanto pensou que mesmo em sua precária condição ainda pudesse afrontar o Partido... Poderia “morrer livre”! Mas teria de descobrir se em seu interior havia o sentimento de ódio, e se o mesmo era direcionado a algo específico.
Fechou os olhos e com dificuldade fez o exercício de busca do que podia haver de mais imundo, “horrível e nauseante”. Depois de alguns sentidos percebeu que a imagem do Grande Irmão lhe surgiu com nitidez. O líder e sua “enorme face”, que conhecia dos enormes cartazes.
Esse era outro segredo... O Grande Irmão com seu “espesso bigode negro e olhos que o seguiam por toda parte” tornaram-se ainda mais nítidos em seu cérebro. Era preciso discernir exatamente quais sentimentos direcionava ao líder da Oceania.
(...)
Pensava a este respeito quando o barulho de botas aproximando-se da porta o despertou. Assim que a porta de aço se abriu, O’Brien entrou. Com ele estavam o jovem oficial de face bem escanhoada e vários guardas com seus uniformes escuros.
O’Brien exigiu que se levantasse e se aproximasse. Colocou as mãos em seus ombros e o encarou. Vociferou que o rapaz tramara contra ele e quisera lhe enganar... Cretinice inadmissível! Exigiu que o olhasse diretamente nos olhos e passou a dizer-lhe que, pelo menos intelectualmente, havia melhorado e que em relação a isso não havia quase nada que tivesse de ser corrigido. Mas acrescentou que seu quadro denunciava que não havia evoluído emocionalmente.
Na sequência exigiu que lhe respondesse sem recorrer a mentiras, principalmente porque tal expediente era dos mais inúteis... Perguntou-lhe quais eram os seus “verdadeiros sentimentos em relação ao Grande Irmão”.
Winston não demorou a responder que odiava o líder político... O’Brien balançou a cabeça como que a aprovar a sinceridade e emendou que chegara o momento do “último passo”. Salientou que além de obedecer ao Grande Irmão era preciso amá-lo.
Depois dessas palavras, empurrou-o levemente para os guardas e ordenou que o levassem à sala 101.

(...)

Aos poucos, Winston conseguiu estabelecer diferenças entre as salas pelas quais passara e a que eram destinadas. Cada uma delas se relacionava a um estágio do processo ao qual estava submetido. Suas inferências resultavam da percepção das ligeiras variações de pressão do ar, assim distinguia se o ambiente estava nos andares mais acima, abaixo ou no subsolo do gigantesco prédio.
Normalmente sofria espancamentos nas salas localizadas mais abaixo. A sala onde O’Brien o havia interrogado por várias horas estava num andar superior, próximo ao topo...
No momento percebia que o colocaram numa cela enorme, a maior que conhecera até então, certamente localizada há “muitos metros abaixo do nível do chão, tão profundo quanto era possível ir”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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