Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-panico-diante-da.html antes
de ler esta postagem:
Vemos Winston em ambiente completamente
diferente... O Café Castanheira. Então somos levados a entender que a parte do
processo que ocorria nas dependências do Ministério do Amor havia se encerrado.
O Castanheira estava
praticamente vazio às três da tarde. Os raios solares evidenciavam a poeira de
suas mesas enquanto a atmosfera era tomada pela música metálica tocada pelas
teletelas. Numa das paredes estava afixado o enorme cartaz com o rosto do
Grande Irmão.
Winston ocupava uma mesa do lado oposto, pelo visto a “mesma de sempre”
desde que fora liberado por O’Brien, de onde podia divisar as letras maiúsculas
que anunciavam que o grande líder zela por todos e, ao mesmo tempo, sentir o seu olhar recair sobre si... Na mesa
havia apenas um copo vazio até que um garçom se aproximasse para abastecê-lo de
Gin Vitória... De fato, o tipo chegou sem que tivesse sido chamado, pois esse
era o procedimento com aquele frequentador. Além do gin, umas gotas de
“sacarina com essência de cravo”, o melhor que o Castanheira tinha a oferecer.
Winston tinha a atenção
voltada aos sons transmitidos pela teletela porque sabia que a qualquer momento
seria transmitido boletim diretamente do Ministério da Paz a respeito da
“frente africana”. Preocupava-o o fato de os inimigos avançarem com tropas
ligeiras rumo ao sul.
(...)
Não devemos estranhar...
Winston estava mesmo preocupado com os ataques dos eurasianos. Sim, ele sabia
que a Oceania “sempre esteve em guerra com a Eurásia”. Como o boletim anterior
não havia apresentado maiores detalhes, ele suspeitava que os confrontos já
ocorressem na foz do rio Congo, e isso significava que Brazzaville e
Leopoldville corriam risco de serem bombardeadas.
A possibilidade de o
império perder o continente africano provocou certa agitação interior, pois
sentiu o quanto os eventos podiam ser temerários. Todavia logo se esqueceu da
guerra e aquietou-se... É que dificilmente conseguia pensar mais apuradamente
por tempo mais prolongado, então pegou o copo e ingeriu o gin de uma só vez.
A bebida era de provocar
arrepios... Como sempre. Tudo nela repugnava, cravos e sacarina. Mas o odor do
gin era o mais difícil de se suportar, principalmente porque permanecia
entranhado no consumidor por dias e noites. Para Winston tratava-se de algo
devastador, que acabava se misturando “em seu espírito” ao fedor das criaturas
medonhas jamais citadas por ele, mesmo em pensamento.
Sabemos a quais criaturas
medonhas o trecho anterior se refere... Ele simplesmente apagara as imagens da
consciência, mas não a memória do episódio. Por isso evitava pensar na
associação entre o gin e o cheiro horrível que invadira suas narinas na ocasião
em que havia sido afrontado com a gaiola metálica.
(...)
Ganhou algum peso desde que O’Brien o liberara. Estava mais corado, e
isso também lhe dava um aspecto mais vívido.
Outro garçom se aproximou da mesa, onde colocou um tabuleiro de xadrez o
último “Times”. O informativo estava aberto na página dos exercícios daquele
jogo. Ao notar o copo esvaziado, tratou de buscar outra garrafa para enchê-lo.
Tudo isso era providenciado sem que Winston pedisse, pois todos ali “conheciam
seus hábitos”. Assim era com a bebida e o jogo de tabuleiro... Sempre à mesma
mesa de canto, que jamais era ocupada por outra pessoa mesmo que o ambiente
estivesse cheio. Jamais se sentava acompanhado, “pois ninguém gostava de ser
visto em sua companhia”.
Neste ponto não podemos deixar de fazer
referência ao período em que Aaronson, Jones e Rutherford em que foram
liberados pelo Ministério do Amor antes de serem definitivamente eliminados.
Eles também eram vistos no Café Castanheira e “ninguém gostava de ser visto em
sua companhia”. Será que Winston estava passando pela mesma etapa? Em breve
seria executado?
Não há como responder às
questões no momento... O fato é que o vemos bem acomodado à sua condição.
Sequer se se preocupava com o quanto bebia ou quanto teria de pagar.
Eventualmente um ou outro garçom lhe mostrava uma nota que bem podia conter
algum valor pelo consumo, mas ele mesmo suspeitava que aquilo fosse apenas uma
formalidade e que o papel não trouxesse a conta exata, sendo sempre inferior.
Quanto a isso não se pode dizer que tivesse de se preocupar se lhe
cobrassem a mais. O fato é que lhe arranjaram outro trabalho no Ministério do
Amor com um salário bem melhor do que lhe pagavam no Departamento de Registro.
Além disso, suas novas funções não tinham nada de estafante.
(...)
As
teletelas interromperam a programação musical. No mesmo instante Winston voltou
seu olhar para uma das placas metálicas para não perder detalhes a respeito do
que viesse a ser informado. Mas em vez de notícias a respeito do conflito na
África, anunciou-se um comunicado do Ministério da Fartura sobre a espetacular
produção de cadarços para sapatos, que no último trimestre havia sido superada
em 98% da cota prevista pelo “Décimo Plano Trienal”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto