sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – Winston no Café Castanheira; freguês habitual após a liberação concedida por O’Brien; preocupação com os rumos da guerra contra a Eurásia na África; gin Vitória e amargas lembranças; novo emprego e exercícios de xadrez por passatempo; espetacular produção de cadarços

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-panico-diante-da.html antes de ler esta postagem:

Vemos Winston em ambiente completamente diferente... O Café Castanheira. Então somos levados a entender que a parte do processo que ocorria nas dependências do Ministério do Amor havia se encerrado.
O Castanheira estava praticamente vazio às três da tarde. Os raios solares evidenciavam a poeira de suas mesas enquanto a atmosfera era tomada pela música metálica tocada pelas teletelas. Numa das paredes estava afixado o enorme cartaz com o rosto do Grande Irmão.
Winston ocupava uma mesa do lado oposto, pelo visto a “mesma de sempre” desde que fora liberado por O’Brien, de onde podia divisar as letras maiúsculas que anunciavam que o grande líder zela por todos e, ao mesmo tempo,  sentir o seu olhar recair sobre si... Na mesa havia apenas um copo vazio até que um garçom se aproximasse para abastecê-lo de Gin Vitória... De fato, o tipo chegou sem que tivesse sido chamado, pois esse era o procedimento com aquele frequentador. Além do gin, umas gotas de “sacarina com essência de cravo”, o melhor que o Castanheira tinha a oferecer.
Winston tinha a atenção voltada aos sons transmitidos pela teletela porque sabia que a qualquer momento seria transmitido boletim diretamente do Ministério da Paz a respeito da “frente africana”. Preocupava-o o fato de os inimigos avançarem com tropas ligeiras rumo ao sul.
(...)
Não devemos estranhar... Winston estava mesmo preocupado com os ataques dos eurasianos. Sim, ele sabia que a Oceania “sempre esteve em guerra com a Eurásia”. Como o boletim anterior não havia apresentado maiores detalhes, ele suspeitava que os confrontos já ocorressem na foz do rio Congo, e isso significava que Brazzaville e Leopoldville corriam risco de serem bombardeadas.
A possibilidade de o império perder o continente africano provocou certa agitação interior, pois sentiu o quanto os eventos podiam ser temerários. Todavia logo se esqueceu da guerra e aquietou-se... É que dificilmente conseguia pensar mais apuradamente por tempo mais prolongado, então pegou o copo e ingeriu o gin de uma só vez.
A bebida era de provocar arrepios... Como sempre. Tudo nela repugnava, cravos e sacarina. Mas o odor do gin era o mais difícil de se suportar, principalmente porque permanecia entranhado no consumidor por dias e noites. Para Winston tratava-se de algo devastador, que acabava se misturando “em seu espírito” ao fedor das criaturas medonhas jamais citadas por ele, mesmo em pensamento.
Sabemos a quais criaturas medonhas o trecho anterior se refere... Ele simplesmente apagara as imagens da consciência, mas não a memória do episódio. Por isso evitava pensar na associação entre o gin e o cheiro horrível que invadira suas narinas na ocasião em que havia sido afrontado com a gaiola metálica.
(...)
Ganhou algum peso desde que O’Brien o liberara. Estava mais corado, e isso também lhe dava um aspecto mais vívido.
Outro garçom se aproximou da mesa, onde colocou um tabuleiro de xadrez o último “Times”. O informativo estava aberto na página dos exercícios daquele jogo. Ao notar o copo esvaziado, tratou de buscar outra garrafa para enchê-lo. Tudo isso era providenciado sem que Winston pedisse, pois todos ali “conheciam seus hábitos”. Assim era com a bebida e o jogo de tabuleiro... Sempre à mesma mesa de canto, que jamais era ocupada por outra pessoa mesmo que o ambiente estivesse cheio. Jamais se sentava acompanhado, “pois ninguém gostava de ser visto em sua companhia”.
Neste ponto não podemos deixar de fazer referência ao período em que Aaronson, Jones e Rutherford em que foram liberados pelo Ministério do Amor antes de serem definitivamente eliminados. Eles também eram vistos no Café Castanheira e “ninguém gostava de ser visto em sua companhia”. Será que Winston estava passando pela mesma etapa? Em breve seria executado?
Não há como responder às questões no momento... O fato é que o vemos bem acomodado à sua condição. Sequer se se preocupava com o quanto bebia ou quanto teria de pagar. Eventualmente um ou outro garçom lhe mostrava uma nota que bem podia conter algum valor pelo consumo, mas ele mesmo suspeitava que aquilo fosse apenas uma formalidade e que o papel não trouxesse a conta exata, sendo sempre inferior.
Quanto a isso não se pode dizer que tivesse de se preocupar se lhe cobrassem a mais. O fato é que lhe arranjaram outro trabalho no Ministério do Amor com um salário bem melhor do que lhe pagavam no Departamento de Registro. Além disso, suas novas funções não tinham nada de estafante.
(...)
As teletelas interromperam a programação musical. No mesmo instante Winston voltou seu olhar para uma das placas metálicas para não perder detalhes a respeito do que viesse a ser informado. Mas em vez de notícias a respeito do conflito na África, anunciou-se um comunicado do Ministério da Fartura sobre a espetacular produção de cadarços para sapatos, que no último trimestre havia sido superada em 98% da cota prevista pelo “Décimo Plano Trienal”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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