quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell - discordâncias de Winston em relação às convicções de O’Brien sobre o futuro dominado pelo Partido provocaram irritação e a suspeição de que o preso político ainda imaginava que o proletariado pudesse se organizar enquanto força de oposição; concepção excludente de humanidade versus sensação de que “o espírito do homem” possa reverter o quadro de dominação; Winston é levado a comparar a própria moral à dos homens do Partido; inesperada audição de diálogo mais que inconveniente; desnudado e diante da própria miséria

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-o-novo-mundo.html antes de ler esta postagem:

Winston havia dito que seria “impossível fundar uma civilização sobre o medo, ódio e crueldade”, e arriscou discordar das palavras de O’Brien a respeito do mundo que surgiria após o estabelecimento do poder total nas mãos do Partido. Refutou suas considerações sobre a nenhuma importância dada à vida das pessoas comuns e à defesa de que “o Partido é imortal”.
Como vimos, o rapaz chegou a dizer que o modelo idealizado por O’Brien seria derrotado. Neste ponto, ouviu-o responder que o Partido controlava a vida “em todos os seus níveis”. Ele disse que talvez Winston imaginasse que algo como a “natureza humana” pudesse se voltar contra as medidas tomadas e as imposições do Partido, mas alertou que já era tempo de saber que “os homens são infinitamente maleáveis” e que a tal “natureza humana” era criada pelos especialistas do IngSoc.
Sugeriu que a outra possibilidade para a “interpretação errônea” de Winston seria o fato de ele ainda imaginar que proletários e/ou escravos realizariam a grande rebelião que derrubaria o Partido. Em relação a isso, O’Brien o aconselhou a “perder a esperança”, pois aqueles eram frágeis e inofensivos como os animais. Será que ainda não havia concluído que “a humanidade é o Partido” e os que não pertencem a ele, os “de fora”, simplesmente são desconsiderados?
(...)
Winston estava mesmo disposto a se contrapor e disse que em algum momento no futuro aqueles excluídos iriam derrotá-los. Emendou que se tratava de uma questão de tempo e que tudo ruiria assim que reconhecessem a verdade sobre o Partido. O’Brien quis saber se ele enxergava “algum sinal ou razão” para que aquilo se concretizasse.
De fato, o rapaz não vislumbrava qualquer possibilidade, mas admitiu que era o que acreditava. Disse que em algum momento o Partido cometeria falhas e isso seria fatal. Referiu-se a “algo no universo”, talvez um espírito ou “princípio”, que não podia ser vencido pelos dirigentes do IngSoc.
Ao ouvir o que considerou um disparate, O’Brien perguntou-lhe se acreditava em Deus... A resposta negativa levou à questão sobre o que seria o referido princípio que colocaria fim à supremacia do Partido... Também a isso ele não soube responder, mas sugeriu que podia ser algo como “o espírito do homem”.
(...)
Podemos imaginar o quanto O’Brien se enfureceu com o diálogo. Não se conteve e resolveu humilhar Winston... O que um trapo como ele estava pensando? Perguntou se se considerava homem. Dessa vez a resposta foi afirmativa. Então sentenciou-lhe que devia ser “o último homem”, pois devia pertencer a uma raça extinta que relutara em reconhecer que o Partido havia herdado absolutamente tudo o que pode ser dominado.
Provocou-o dizendo que, ao considerar-se homem, estava isolado de todos e “fora da História”. Um “não-existente”!
Ainda mais irado, perguntou se ele se considerava superior aos dirigentes do IngSoc, que recorriam às mentiras e crueldades. Novamente a resposta de Winston foi afirmativa, mas O’Brien nada disse... Em vez disso, a sala foi tomada por outras duas vozes e o rapaz reconheceu a própria numa delas. Tratava-se de uma gravação do diálogo que teve com ele na ocasião em que o visitara com Júlia e se tornara integrante da “Fraternidade”.
A gravação reproduzia suas frases em que prometia “mentir, roubar, forjar, assassinar, incentivar a toxicomania e a prostituição, a disseminação de doenças venéreas, atirar vitríolo no rosto duma criança”.
O’Brien não conseguiu conter a impaciência e silenciou a reprodução fonográfica. Depois vociferou ao Winston exigindo que se levantasse imediatamente. As amarras que o ligavam à cama foram liberadas e com muita dificuldade pôs-se a levantar-se.
O rapaz se endireitou o melhor que pôde e percebeu que devia estar bem alquebrado enquanto O’Brien ironizava ao dizer que estava vendo “o último homem, o guardião do espírito humano”. Ainda muito irritado, exigiu que Winston se despisse para que pudesse conferir o próprio aspecto.
Ele usava o macacão que estava ajustado em seu corpo magérrimo por um barbante. Pensou que desde que havia sido preso não se despira. Por isso surpreendeu-se ao notar que suas roupas de baixo não passavam de farrapos imundos amarelecidos. Livrou-se delas e notou três espelhos instalados a um canto da sala. Aproximou-se deles e não conseguiu conter o grito de horror.
(...)
O’Brien apressou-o exigindo que se aproximasse mais para que se visse também de lado. Mas Winston estava apavorado com o aspecto esquelético do próprio corpo, uma criatura cinzenta, curvada e apavorante. O mais dramático era saber que o que via refletido no espelho era ele mesmo:

                   “A cara da criatura parecia se projetar, por causa do corpo arcado. Uma cara triste de presidiário, com a testa ossuda se prolongando pelo crânio calvo, um nariz adunco e zigomas salientes, acima dos quais os olhos apareciam vigilantes e ferozes”.

Uma aparência assustadora, sem dúvida...
Como veremos, os espelhos revelaram-lhe mais de seu degradante aspecto.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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