quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – o fim; convicção de que doces lembranças surgem carregadas de falsidade; enfim, o boletim do Ministério da Paz, toque de clarim e anúncio de esmagadora vitória; euforia geral e sensação particular de redenção; afeto e devoção ao líder na nação

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-improdutivo.html antes de ler esta postagem:

Winston se lembrou das dificuldades de sua mãe para cuidar das duas crianças. Além das péssimas condições de moradia e da falta de comida, ela tinha de encontrar meios de conter a fúria do filho. A criança não tinha maturidade sequer para notar que também sua pequena irmã necessitava dos cuidados da pobre mulher...
Na comodidade da mesa do Castanheira recordou especificamente do dia chuvoso, quando se irritou por não poder sair do pequeno e escuro quarto. Fez tanta pirraça que a mãe se viu obrigada a providenciar algo que o fizesse sossegar. A solução que ela encontrou foi ir até a pequena loja que funcionava precariamente e esporadicamente para comprar um passatempo, um jogo com tabuleiro e dados. Antes de se retirar para a chuva, implorou para que “ficasse bonzinho”.
A memória do Winston adulto dava conta de que ela voltou para o pobre quarto “com uma caixa de papelão contendo um jogo de obstáculos”. Parecia não precisar de muito esforço para sentir o “cheiro da cartolina molhada” invadindo suas narinas... Era um jogo muito simples, dos mais baratos que se podia encontrar, e ainda por cima com defeito no tabuleiro. Os “dados de madeira caíam de lado”. Lembrou que na ocasião olhou para o brinquedo sem demonstrar qualquer interesse. Na verdade, seu humor até piorou...
Mas a mãe acendeu um pedaço de vela e se sentou no chão para que pudessem jogar. A iniciativa o animou de um momento para outro e logo se envolveu completamente na disputa. A cada expectativa de vitória sucedia uma “arapuca” que fazia o jogador recuar várias casas e isso provocava gritos e gargalhadas.
Jogaram oito partidas e cada um venceu quatro... A filha mais nova nada compreendia, mas alegrava-se com as risadas da mãe e do irmão. Desde a cama, onde foi colocada entre dois travesseiros, a menina se divertia... A tarde foi de felicidade simples para os três, “como na primeira infância”.
(...)
Essas reminiscências apagaram-se porque Winston as expulsou da memória. Voltou os olhos para o xadrez e sentenciou para si mesmo que se tratava de falsas lembranças... Sabia que algumas vezes elas chegavam à sua mente e perturbava-se com elas. Sabia também que isso não era um problema desde “que soubesse do que se tratava”, e esse era o seu caso. Vivia com a convicção de que certamente algumas coisas ocorreram, mas outras só podiam ser produto de sua imaginação.
Pegou novamente o bispo branco... No mesmo momento ouviu-se um forte toque de clarim. Assustou-se e a peça caiu sobre o tabuleiro... Foi “como se lhe tivessem dado uma alfinetada”. Enfim o boletim do Ministério da Paz! E as notícias eram ótimas... Vitória!  Logo soube, pois era sempre assim, ao toque de clarim, que a teletela introduzia comunicados e notícias de “boas novas”.
Todos os que se encontravam no Castanheira pararam o que faziam para dar atenção ao boletim. A rigor não se conseguia ouvir o que estava sendo transmitido por causa da euforia que se instalou pelas ruas. Mesmo assim, Winston tentou captar alguns fragmentos que davam conta de que tudo se sucedera conforme ele havia imaginado...

                   “Um vasto exército transportado pelo mar, secretamente concentrado, um golpe repentino na retaguarda do inimigo, a flecha branca cortando a haste da negra”.
                   "Vasta manobra estratégica... Perfeita coordenação... Derrota integral... Meio milhão de prisioneiros... Completa desmoralização... Controle de toda a África... Leva a guerra a uma distância visível do fim... Vitória ... A maior vitória da história humana... Vitória, vitória, vitória!"
 
(...)

Winston se mantivera sentado. Todavia seus pés movimentavam-se como se estivesse em meio à multidão que corria pelas ruas e celebrava a vitória das tropas. Era isso mesmo o que estava pensando, que se misturara ao povo e gritava vivas ao Grande Irmão.
Voltou seu olhar para a grande imagem do cartaz e pensou que tudo estava bem, pois “o colosso (que) dominava o mundo” havia suportado todas as hordas asiáticas. Não podia crer que há poucos instantes desconfiara que o boletim pudesse trazer más notícias.
A derrota dos eurasianos significava muito para Winston. Ele sabia que desde que pusera os pés no Ministério do Amor pela primeira vez havia passado por uma profunda transformação. Mas nada se comparava à sua reação naquele instante triunfal... Finalmente podia dizer que estava salvo.
(...)
A movimentação e gritaria das ruas já haviam diminuído consideravelmente. O boletim prosseguia com relatos a respeito dos prisioneiros e das baixas sofridas pelos inimigos... Os garçons retornaram aos seus afazeres e um deles trouxe mais gin para Winston.
Extasiado, notou que o copo estava novamente cheio... Não mais se via misturado aos que celebravam a vitória... Em vez disso, via-se no Ministério do Amor, “perdoado e com a alma branca de neve”. Via-se na tribuna a confessar e a entregar nomes... E depois a andar “pelo corredor de ladrilhos brancos, com a impressão de caminhar ao sol, acompanhado por um guarda armado” que dispararia o balaço contra seu crânio.
Mas isso era devaneio desbaratado... Logo voltou a fitar para o cartaz do Grande Irmão...

                   “Levara quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh mal-entendido cruel e desnecessário! Oh teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gin escorreram de cada lado do nariz”.
                   “Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograda a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão”.

Fim.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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