Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-lembrando-o.html antes
de ler esta postagem:
O encontro com Júlia depois de terem passado
pela repressão do Ministério do Amor foi algo triste e decepcionante. Tanto ela
quanto Winston estavam muito mudados fisicamente... Já não eram os mesmos, pois
haviam sido submetidos a substâncias psicotrópicas que possibilitaram a “reeducação”
imposta pelo sistema.
Durante o encontro,
Winston percebeu que a amiga de outrora o desprezou com repugnância. Na ocasião,
Júlia salientou que não havia suportado a tortura e o suplício... Revelou que o
havia traído e que no momento de maior pressão pediu que a violência contra ela
fosse transferida para ele. Admitiu que não era mero subterfúgio e concluiu que
no final das contas “só nós temos importância”. Traiu para se manter viva, e
isso a levou a entender que não nutria mais a mesma afeição por ele.
Winston
concordou com ela... Confirmou que também a havia traído, que passara pelo
mesmo trauma e que por fim já não podiam manter os sentimentos de antes.
Depois disso veio o
silêncio... Sentiram o vento frio nos rostos e isso aumentou o incômodo. A moça
falou algo a respeito do metrô e se levantou... Era preciso movimentar-se para
suportar a friagem. Era momento de se despedirem.
Ele
arriscou dizer que precisavam se encontrar novamente... Ela respondeu que sim, mas
pôs-se a caminhar apressadamente. Apesar disso, Winston a seguiu de perto. Sem
conseguir alcançá-la, chegou até a estação, todavia desistiu da aproximação ao sentenciar
para si mesmo que aquilo era “insuportável e inútil”.
O fim dessa
“perseguição” é revelador do quanto ele estava adaptado à rotina de um tipo que
se poderia considerar “ajustado”. Mais do que desistir de alcançá-la, desejou
retornar ao ambiente do Castanheira, onde não sentiria o rigor do frio e
poderia contar com o aconchego de sua mesa de canto, o gin, a leitura do jornal
e as peças do xadrez para um bom exercício no tabuleiro. Não foi por acaso que
deixou-se ficar para trás e retirou-se da estação.
Enquanto seguiu para
o Café Castanheira, lembrou-se do momento em que havia concordado com Júlia a
respeito da traição... E era isso mesmo o que pensava. No momento de maior
pânico, ela desejou que ele sofresse em seu lugar. Ele admitiu que sempre se
falava seriamente ao propor a troca... Também ele desejara que ela sofresse em
seu lugar.
(...)
Mas é preciso voltar ao Castanheira e às reflexões desconexas de Winston
a respeito de outros sentimentos. Ele voltou sua atenção à música transmitida
desde as teletelas e notou que algo havia se modificado na sonoridade. Mas
podia ser apenas impressão relacionada a alguma lembrança. Ouviu (ou pensou ter
ouvido) a canção anunciando “Sob a frondosa castanheira eu te vendi e tu me
vendeste...”. Aquela mesma que tocou na ocasião em Winston avistou Jones, Aaronson e Rutherford naquele mesmo café...
Não há como não estabelecermos uma comparação
entre sua condição e a dos três solitários bebedores de gin. No canto estava a mesma
mesa de xadrez... Algum tempo depois foram retirados novamente de circulação e
executados exemplarmente (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-sobre-o-ativista.html).
Fica a pergunta a sobre a
coincidência e o questionamento a respeito do motivo de a canção vir à tona
logo após a lembrança sobre o encontro com Júlia.
(...)
Também
os olhos de Winston se encheram de lágrimas. Um garçom se aproximou para lhe
servir mais gin. Ele contemplou o copo abastecido e conferiu seu cheiro
desagradável. A bebida horrível “tornara-se o elemento em que nadava. Era sua vida, sua morte, sua
ressurreição”.
Winston se tornara alcoólatra... O gin o levava ao entorpecimento antes
de dormir. E o despertar do dia seguinte, algo que invariavelmente ocorria
depois das onze horas, era sempre regado pelo líquido que o impulsionava a
“descolar as pálpebras”, a livrar-se do ardido da boca e das dores nas
costas... A bebida o fazia se sentir revigorado.
Assim
que se levantava (já não era despertado pelos sons estridentes da teletela),
passava algumas horas ouvindo o conteúdo da teletela sem se apartar da garrafa.
Às três da tarde chegava ao Castanheira, de onde só saía quando o atendimento
se encerrava. De resto, seu cotidiano confirmava sua condição desprezível... O
que fazia ou deixava de fazer não importava a quem quer que fosse.
Seu trabalho
consistia em comparecer duas vezes por semana num escritório localizado no
Ministério da Verdade. No gigantesco edifício, a minúscula sala parecia não ter
qualquer funcionalidade... Um escritório “esquecido e empoeirado”, e, no
entanto, era nele que cumpria as poucas horas de um serviço de nenhuma
relevância.
O
caso é que ele havia sido “nomeado o subcomitê de um subcomitê que surgira de
um dos inúmeros comitês que tratavam das dificuldades menores aparecidas durante
a compilação da Décima Primeira Edição do Dicionário de Novilíngua”. Sua
principal tarefa era participar da elaboração de um “relatório provisório”.
Outros
quatro tipos que viviam mais ou menos as mesmas condições de Winston estavam
envolvidos na tarefa... Ocorre que por mais que se esforçassem (ou fingissem se
esforçar) não conseguiam saber “a respeito do que deviam escrever”, e acontecia
de se perderem em discussões sobre questões que se referiam à “colocação das
vírgulas antes ou depois das aspas”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto