segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – sobre o fim do encontro com Júlia; “perseguição” até o metrô, constatação da certeza da traição e da inutilidade de forçar a aproximação; o Castanheira, um “porto seguro”; “sob a frondosa castanheira eu te vendi e tu me vendeste”, uma estranha coincidência; uma existência embriagada e desprezada; o trabalho no empoeirado e esquecido escritório do Ministério do Amor

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-lembrando-o.html antes de ler esta postagem:

O encontro com Júlia depois de terem passado pela repressão do Ministério do Amor foi algo triste e decepcionante. Tanto ela quanto Winston estavam muito mudados fisicamente... Já não eram os mesmos, pois haviam sido submetidos a substâncias psicotrópicas que possibilitaram a “reeducação” imposta pelo sistema.
Durante o encontro, Winston percebeu que a amiga de outrora o desprezou com repugnância. Na ocasião, Júlia salientou que não havia suportado a tortura e o suplício... Revelou que o havia traído e que no momento de maior pressão pediu que a violência contra ela fosse transferida para ele. Admitiu que não era mero subterfúgio e concluiu que no final das contas “só nós temos importância”. Traiu para se manter viva, e isso a levou a entender que não nutria mais a mesma afeição por ele.
Winston concordou com ela... Confirmou que também a havia traído, que passara pelo mesmo trauma e que por fim já não podiam manter os sentimentos de antes.
Depois disso veio o silêncio... Sentiram o vento frio nos rostos e isso aumentou o incômodo. A moça falou algo a respeito do metrô e se levantou... Era preciso movimentar-se para suportar a friagem. Era momento de se despedirem.
Ele arriscou dizer que precisavam se encontrar novamente... Ela respondeu que sim, mas pôs-se a caminhar apressadamente. Apesar disso, Winston a seguiu de perto. Sem conseguir alcançá-la, chegou até a estação, todavia desistiu da aproximação ao sentenciar para si mesmo que aquilo era “insuportável e inútil”.
O fim dessa “perseguição” é revelador do quanto ele estava adaptado à rotina de um tipo que se poderia considerar “ajustado”. Mais do que desistir de alcançá-la, desejou retornar ao ambiente do Castanheira, onde não sentiria o rigor do frio e poderia contar com o aconchego de sua mesa de canto, o gin, a leitura do jornal e as peças do xadrez para um bom exercício no tabuleiro. Não foi por acaso que deixou-se ficar para trás e retirou-se da estação.
Enquanto seguiu para o Café Castanheira, lembrou-se do momento em que havia concordado com Júlia a respeito da traição... E era isso mesmo o que pensava. No momento de maior pânico, ela desejou que ele sofresse em seu lugar. Ele admitiu que sempre se falava seriamente ao propor a troca... Também ele desejara que ela sofresse em seu lugar.

(...)

Mas é preciso voltar ao Castanheira e às reflexões desconexas de Winston a respeito de outros sentimentos. Ele voltou sua atenção à música transmitida desde as teletelas e notou que algo havia se modificado na sonoridade. Mas podia ser apenas impressão relacionada a alguma lembrança. Ouviu (ou pensou ter ouvido) a canção anunciando “Sob a frondosa castanheira eu te vendi e tu me vendeste...”. Aquela mesma que tocou na ocasião em Winston avistou Jones, Aaronson e Rutherford naquele mesmo café...
Não há como não estabelecermos uma comparação entre sua condição e a dos três solitários bebedores de gin. No canto estava a mesma mesa de xadrez... Algum tempo depois foram retirados novamente de circulação e executados exemplarmente (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-sobre-o-ativista.html).
Fica a pergunta a sobre a coincidência e o questionamento a respeito do motivo de a canção vir à tona logo após a lembrança sobre o encontro com Júlia.
(...)
Também os olhos de Winston se encheram de lágrimas. Um garçom se aproximou para lhe servir mais gin. Ele contemplou o copo abastecido e conferiu seu cheiro desagradável. A bebida horrível “tornara-se o elemento em que nadava. Era sua vida, sua morte, sua ressurreição”.
Winston se tornara alcoólatra... O gin o levava ao entorpecimento antes de dormir. E o despertar do dia seguinte, algo que invariavelmente ocorria depois das onze horas, era sempre regado pelo líquido que o impulsionava a “descolar as pálpebras”, a livrar-se do ardido da boca e das dores nas costas... A bebida o fazia se sentir revigorado.
Assim que se levantava (já não era despertado pelos sons estridentes da teletela), passava algumas horas ouvindo o conteúdo da teletela sem se apartar da garrafa. Às três da tarde chegava ao Castanheira, de onde só saía quando o atendimento se encerrava. De resto, seu cotidiano confirmava sua condição desprezível... O que fazia ou deixava de fazer não importava a quem quer que fosse.
Seu trabalho consistia em comparecer duas vezes por semana num escritório localizado no Ministério da Verdade. No gigantesco edifício, a minúscula sala parecia não ter qualquer funcionalidade... Um escritório “esquecido e empoeirado”, e, no entanto, era nele que cumpria as poucas horas de um serviço de nenhuma relevância.
O caso é que ele havia sido “nomeado o subcomitê de um subcomitê que surgira de um dos inúmeros comitês que tratavam das dificuldades menores aparecidas durante a compilação da Décima Primeira Edição do Dicionário de Novilíngua”. Sua principal tarefa era participar da elaboração de um “relatório provisório”.
Outros quatro tipos que viviam mais ou menos as mesmas condições de Winston estavam envolvidos na tarefa... Ocorre que por mais que se esforçassem (ou fingissem se esforçar) não conseguiam saber “a respeito do que deviam escrever”, e acontecia de se perderem em discussões sobre questões que se referiam à “colocação das vírgulas antes ou depois das aspas”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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