segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell - um “debate” acerca da realidade das coisas e sua existência condicionada à consciência humana; o planeta enquanto centro do universo e a possibilidade de o Partido elaborar um sistema para legitimar tal aberração; divagações em torno do “solipsismo” e o ponto de maior importância a respeito do poder que interessa ao IngSoc

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-mais-respeito-dos.html antes de ler esta postagem:

Em sua ousada tentativa de refutar as afirmações de O’Brien a respeito do poder do Partido, inclusive de definir “as Leis da Natureza” e de a tudo controlar, Winston exclamou que a inerme espécie humana habita o planeta há pouco tempo, que a Terra não passa de “um grão de pó” no universo e que ela permaneceu desabitada por milhões de anos.
Sustentando a ideia de que tudo o que existe só mantem sua “condição de existência” na medida em que há consciências humanas para contemplar e refletir a respeito, O’Brien respondeu que as ponderações que acabar de ouvir eram a mais pura tolice... E emendou que “a Terra é tão velha quanto o homem”.
Winston prosseguiu como se estivesse participando de um debate e argumentou que “as rochas estão cheias de ossos de animais extintos” e citou alguns exemplos (mamutes, mastodontes e répteis gigantescos) de espécies que viveram no planeta bem antes da existência humana. O’Brien perguntou-lhe se já havia visto tais ossos com a convicção de que certamente a resposta só podia ser negativa. Depois acusou os biólogos do século anterior de terem inventado tais estruturas... Insistiu que antes dos seres humanos nada havia na Terra e sentenciou que “fora do homem não há nada”. No caso de a espécie humana se extinguir, nada mais haverá.
Empolgado pela possibilidade de expor seu ponto de vista, Winston problematizou que “o universo inteiro está fora de nós”. Era preciso ao menos pensar nas estrelas, sendo que muitíssimas “estão a um milhão de anos-luz de distância” e, sendo assim, completamente fora do alcance dos terráqueos.
Mais uma vez, O’Brien aceitou o questionamento e lançou um desafio... O que são afinal as estrelas senão “pedacinhos de fogo a alguns quilômetros de distância”? Se o Partido quisesse poderia facilmente alcançá-las! Poderia mesmo apagá-las! E em tom de conclusão disse que “a Terra é o centro do universo” e que “o sol e as estrelas giram ao seu redor”.
(...)
Winston quase não conseguiu conter sua indignação após ouvir tais aberrações, tanto é que movimentou o dolorido corpo na cama. Não fez qualquer comentário, mas O’Brien entendeu que ele discordava completamente de suas palavras. Então pôs-se a completar as sentenças que havia proferido e disse que “para certos propósitos” aquilo não era mesmo verdadeiro.
Admitiu que a navegação no oceano ou os fenômenos dos eclipses nos levam a “supor que a Terra gire em torno do sol e que as estrelas estão a milhões e milhões de quilômetros de distância”. Mas observou que isso não era impedimento para que o Partido engendrasse esforços na elaboração de “um sistema dual de astronomia”. Desse modo, a estrelas teriam localizações e distâncias “ajustadas” de acordo com as necessidades do regime.
Depois de mais essa argumentação, encarou Winston e o provocou a manifestar sua incredulidade. Imaginava que os matemáticos do Partido não dariam conta de tal projeto? Lembrou-lhe que não podia desconsiderar o “duplipensar”, a metodologia e ferramenta ideológica que possibilitaria o revolucionário “sistema dual de astronomia” e tantas outras máximas.
(...)
Sem qualquer possibilidade de defender o óbvio, Winston encolheu-se, pois sabia que nada do que dissesse seria levado em consideração. Pelo contrário! Da parte do outro ouviria respostas que equivaleriam a pancadas. Apesar de tudo o que havia sofrido nas mãos de O’Brien e demais agentes da repressão do Ministério do Amor, ainda tinha consciência de que pensava corretamente e que estava com a razão. Certamente as ideias a respeito de que “nada existe fora da mente humana” podiam ser contestadas.
Sim, aquilo havia sido denunciado e sabia-se por provas que era falso. Já fazia muito tempo! Mas ele não conseguia se lembrar do nome da teoria que por acaso estava sendo defendida pelo membro do Partido Interno.
Pensava sobre essas coisas quando notou que O’Brien deixou escapar leve sorriso. Depois o ouviu dizer que havia reparado em sessão passada que a metafísica não era o seu forte. Disse que sabia o ele estava pensando e que a palavra que não conseguia se lembrar era “solipsismo”.
É claro que Winston espantou-se mais uma vez com a “clarividência” de seu torturador. Mas teve de ouvir ainda que não era bem esse termo que devia ser aplicado às ideias que ele pronunciou anteriormente. No máximo devia pensar em “solipsismo coletivo”. Mas ainda assim não era a mesma coisa e a rigor era bem o oposto.
(...)
Essas observações não tiveram continuidade porque O’Brien sentenciou que eram resultado de divagações... O que importava era compreender que o “verdadeiro poder”, aquele que o Partido ambicionava sempre e desde sempre, não era o “poder sobre as coisas, mas o poder sobre os homens”.
A partir desse juízo, seria preciso refletir sobre “como um homem afirma o seu poder sobre outro”. E foi exatamente isso o que perguntou ao Winston.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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