Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-mais-respeito-dos.html antes
de ler esta postagem:
Em sua ousada tentativa de refutar as afirmações
de O’Brien a respeito do poder do Partido, inclusive de definir “as Leis da
Natureza” e de a tudo controlar, Winston exclamou que a inerme espécie humana
habita o planeta há pouco tempo, que a Terra não passa de “um grão de pó” no
universo e que ela permaneceu desabitada por milhões de anos.
Sustentando a ideia
de que tudo o que existe só mantem sua “condição de existência” na medida em
que há consciências humanas para contemplar e refletir a respeito, O’Brien respondeu
que as ponderações que acabar de ouvir eram a mais pura tolice... E emendou que
“a Terra é tão velha quanto o homem”.
Winston prosseguiu como se estivesse participando de um debate e
argumentou que “as rochas estão cheias de ossos de animais extintos” e citou
alguns exemplos (mamutes, mastodontes e répteis gigantescos) de espécies que
viveram no planeta bem antes da existência humana. O’Brien perguntou-lhe se já
havia visto tais ossos com a convicção de que certamente a resposta só podia
ser negativa. Depois acusou os biólogos do século anterior de terem inventado
tais estruturas... Insistiu que antes dos seres humanos nada havia na Terra e
sentenciou que “fora do homem não há nada”. No caso de a espécie humana se
extinguir, nada mais haverá.
Empolgado
pela possibilidade de expor seu ponto de vista, Winston problematizou que “o
universo inteiro está fora de nós”. Era preciso ao menos pensar nas estrelas,
sendo que muitíssimas “estão a um milhão de anos-luz de distância” e, sendo
assim, completamente fora do alcance dos terráqueos.
Mais uma vez, O’Brien
aceitou o questionamento e lançou um desafio... O que são afinal as estrelas
senão “pedacinhos de fogo a alguns quilômetros de distância”? Se o Partido
quisesse poderia facilmente alcançá-las! Poderia mesmo apagá-las! E em tom de
conclusão disse que “a Terra é o centro do universo” e que “o sol e as estrelas
giram ao seu redor”.
(...)
Winston
quase não conseguiu conter sua indignação após ouvir tais aberrações, tanto é
que movimentou o dolorido corpo na cama. Não fez qualquer comentário, mas O’Brien
entendeu que ele discordava completamente de suas palavras. Então pôs-se a
completar as sentenças que havia proferido e disse que “para certos propósitos”
aquilo não era mesmo verdadeiro.
Admitiu que a
navegação no oceano ou os fenômenos dos eclipses nos levam a “supor que a Terra
gire em torno do sol e que as estrelas estão a milhões e milhões de quilômetros
de distância”. Mas observou que isso não era impedimento para que o Partido engendrasse
esforços na elaboração de “um sistema dual de astronomia”. Desse modo, a
estrelas teriam localizações e distâncias “ajustadas” de acordo com as
necessidades do regime.
Depois de mais essa
argumentação, encarou Winston e o provocou a manifestar sua incredulidade. Imaginava
que os matemáticos do Partido não dariam conta de tal projeto? Lembrou-lhe que
não podia desconsiderar o “duplipensar”, a metodologia e ferramenta ideológica que
possibilitaria o revolucionário “sistema dual de astronomia” e tantas outras
máximas.
(...)
Sem qualquer possibilidade de defender o óbvio, Winston encolheu-se,
pois sabia que nada do que dissesse seria levado em consideração. Pelo
contrário! Da parte do outro ouviria respostas que equivaleriam a pancadas.
Apesar de tudo o que havia sofrido nas mãos de O’Brien e demais agentes da
repressão do Ministério do Amor, ainda tinha consciência de que pensava
corretamente e que estava com a razão. Certamente as ideias a respeito de que “nada
existe fora da mente humana” podiam ser contestadas.
Sim, aquilo havia sido denunciado e sabia-se por provas que era falso.
Já fazia muito tempo! Mas ele não conseguia se lembrar do nome da teoria que
por acaso estava sendo defendida pelo membro do Partido Interno.
Pensava sobre essas coisas quando notou que O’Brien
deixou escapar leve sorriso. Depois o ouviu dizer que havia reparado em sessão
passada que a metafísica não era o seu forte. Disse que sabia o ele estava
pensando e que a palavra que não conseguia se lembrar era “solipsismo”.
É claro que Winston
espantou-se mais uma vez com a “clarividência” de seu torturador. Mas teve de
ouvir ainda que não era bem esse termo que devia ser aplicado às ideias que ele
pronunciou anteriormente. No máximo devia pensar em “solipsismo coletivo”. Mas
ainda assim não era a mesma coisa e a rigor era bem o oposto.
(...)
Essas observações não tiveram continuidade porque O’Brien sentenciou que
eram resultado de divagações... O que importava era compreender que o “verdadeiro
poder”, aquele que o Partido ambicionava sempre e desde sempre, não era o “poder
sobre as coisas, mas o poder sobre os homens”.
A
partir desse juízo, seria preciso refletir sobre “como um homem afirma o seu
poder sobre outro”. E foi exatamente isso o que perguntou ao Winston.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-o-poder-se-exerce.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto