domingo, 12 de maio de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – sobre o medo de ter medo no momento derradeiro da vida; uma existência marcada pelos riscos e enfrentamentos; o Mayombe como ambiente dos solitários e psicologicamente torturados; últimas cartadas de Ondina e a dificuldade de aceitar a separação

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/05/mayombe-de-pepetela-nos-bracos-de.html antes de ler esta postagem:

Ondina quis saber se o camarada Sem Medo tinha medo da morte. Ele respondeu que pensava que não... Sabia que era difícil responder à questão, mas podia afirmar que seria terrível sentir medo da morte no instante mesmo em que soubesse que sua hora houvesse chegado. Essa situação o tornaria um fracassado e ao mesmo tempo um impostor, já que a personalidade que construíra durante a existência seria destruída no momento derradeiro. Ter medo da morte, então, significaria trair-se, sentir-se um impostor.
(...)
Então Sem Medo não tinha medo da morte, mas “medo de sentir medo ao morrer”. Sua vida marcada pelos riscos que ele mesmo parecia buscar confirmava uma intenção de travar confrontos existenciais, confrontos com a morte... Para Ondina aquelas palavras soaram estúpidas, e foi isso o que ela sentenciou... Ele defendeu-se garantindo que “nada no que é homem é estúpido”. Em tudo há uma razão.
Talvez a explicação fosse psicológica... Se sua postura fosse “gratuita”, concordaria que se tratasse de estupidez. De sua parte, podia dizer que tinha necessidade de se confrontar, e que isso é próprio dos que se enxergam como criaturas humanas.
Neste ponto, Sem Medo fez referências ao Mundo Novo, jovem que parecia haver subtraído essas reflexões que lhe eram tão caras. Mundo Novo incorporava a personalidade política. Podia compará-lo ao botão ou à manivela (do aparelho). Isso preenchia sua existência... Definitivamente Sem Medo via a si mesmo de modo diferenciado e pensava que Ondina conseguia entendê-lo como um tipo “torturado” e solitário.
O Mayombe caía-lhe bem porque em seu interior todos se tornavam solitários (e torturados).
(...)
Ondina ainda mais se encantou por Sem Medo, seu enigmático modo de ser e por suas palavras carregadas de sinceridade... Mais uma vez entregou-se totalmente aos seus desejos.
Enquanto se relacionavam, Sem Medo sentiu que não queria que a noite tivesse fim. Mas bem antes que o dia amanhecesse teria de partir novamente para o Mayombe.
Por volta de uma hora da madrugada, ele disse que tinham mais umas três horas para se entregarem um ao outro... Ondina protestou ao responder que podiam ficar juntos pelo resto de suas vidas. Mais uma vez ele negou... Ela o abraçou garantindo que podia conquistá-lo de tal modo que logo que a missão contra os tugas fosse finalizada voltaria aos seus braços e ao seu amor. Disse isso e prometeu que aquelas três horas seriam decisivas para conquistá-lo de vez.
Sem Medo pediu-lhe para não alimentar ilusões e que era melhor curtirem o que restava da última noite juntos. Ondina esbravejou se recusando a admitir que não mais se encontrariam. Gritou que isso equivalia a perdê-lo para sempre, como que para a morte.
Ele procurou chamá-la à razão insistindo que devia reconhecer que o João Comissário era o homem da vida dela... Ondina respondeu que pelo João nutria apenas ternura. Sem Medo parecia tentar curá-la da teimosia e voltou a dizer que ela o amava e que, com o tempo, teria necessidade de viver mais próxima do João.
Para Sem Medo, a ideia que Ondina fazia dele mesmo se dissiparia... Repetiu que o que ela mais apreciava nele era tudo o que sua consciência transferia do João para ele... Quis dizer que ela o via e se sentia atraída, todavia não era exatamente por ele.
Sem dúvida, esses juízos não são de fácil compreensão. Mas pelo visto ela entendeu, pois mais uma vez se relacionaram. Na sequência acenderam outros cigarros.
(...)
Ondina quis saber para onde Sem Medo seguiria após o ataque ao Pau Caído... Ele respondeu que não sabia... Talvez fosse para a Serra da Cheia (Huíla; ao sul) ou para Huambo (também ao sul; meio caminho para a Huíla).
Ela emendou que poderia pedir sua transferência para a mesma localidade.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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