sexta-feira, 10 de maio de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – ainda a conversa a respeito das expectativas do pós-guerra; Sem Medo fala mais uma vez sobre a incompatibilidade entre o seu modo de ser e os ideais do aparelho de partido único; Mundo Novo não crê que viverá para conhecer as transformações profundas pelas quais lutavam e vê o comandante como um fracassado

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/05/mayombe-de-pepetela-providenciando.html antes de ler esta postagem:

Sem Medo jantava com Mundo Novo e Ondina...
Os dois guerrilheiros conversavam sobre suas expectativas em relação ao desenrolar do movimento e sobre o futuro de cada um na Angola que surgiria.
Sem Medo dissera que um aparelho burocrático se instalaria e que considerava o rapaz capacitado para as tarefas que o Partido demandaria...
(...)
O rapaz quis saber também o que Sem Medo faria logo que o tal aparelho se instalasse. O comandante admitiu que nunca soubera responder àquela questão. O que podia dizer, e deseja que o Mundo Novo compreendesse, era que a Revolução significava apenas “a metade” do que ele desejava. Todavia entendia que era o que havia de possível a se realizar no momento. Disse que conhecia o seu papel e que estaria engajado nele até o fim, mesmo sabendo que a sua participação devia ser contada como uma “metade inútil” que parecia não poder se separar de outra “metade útil”.
Mundo Novo ouviu os argumentos de Sem Medo e respondeu que também ele via a realidade do mesmo modo. Entendia que o Comunismo não vingaria tão cedo. Considerava ainda que quando a nova conjuntura triunfasse ele também já não estaria vivo. Talvez viesse a conhecer uma Angola Socialista, mas entendia que a transformação das relações de produção demandaria muitos anos de luta.
Sem Medo discordou e garantiu que o campo de atuação de seu interlocutor era político e, assim sendo, ao mesmo tempo em que lutava pela libertação do país, contribuía para a construção do Socialismo.
O jovem quis saber se o comandante não participava da mesma mobilização... Sem Medo respondeu que podia ser visto como um “aventureiro”, alguém que esperava que a guerra tivesse foco na transformação dos homens envolvidos... Mas via-se que os objetivos políticos eram majoritários entre os militantes se sobrepunham a essa premissa.
Depois dessa afirmação, Sem Medo citou o grupamento que comandava e destacou que seus homens não eram “manejados para destruir o inimigo, mas um conjunto de seres diferentes, individuais, cada um com as suas razões subjetivas de lutar e que, aliás, se comportam como tal”.
Mundo Novo não conseguiu entender as palavras de Sem Medo. Este admitiu que que não era fácil compreendê-lo e ele próprio não tinha condições de explicar-se melhor. Disse que ficava satisfeito quando notava que um de seus guerrilheiros assumia-se como indivíduo autônomo e de personalidade, ainda que, para a maioria, esse tipo de personalidade estivesse mais afinada ao individualismo. O que havia de tão significativo nesse tipo de postura? Para Sem Medo aquilo indicava o “nascimento do homem novo”, “contra tudo e contra todos, um homem livre de baixezas e preconceitos”.
É claro que essa transformação podia colocar o “homem novo” em contradição com a “disciplina e a moral” arraigados no movimento, mas para Sem Medo o processo valia a pena. Sobre Mundo Novo, ele podia dizer que compreendia a sua conduta... Tratava-se de uma postura mais afinada com o momento político do país. Tipos como Mundo Novo, quadros importantes do movimento, se “serviam dos homens”. Sem Medo possuía um modo de ser que não admitia a manipulação dos guerrilheiros e militantes, e exatamente por isso entendia que não podia pertencer ao aparelho. A defesa dessa ética mais “existencialista” certamente ainda provocaria muitas críticas. Mas será que tudo devia ser analisado do ponto de vista da culpabilidade?
(...)
Mundo Novo manteve-se pacientemente ouvindo as palavras de Sem Medo até que se sentiu à vontade para sentenciar que ele só podia estar desmoralizado. Obviamente se referia ao drama que o comandante devia enfrentar ao pensar daquele modo libertário num momento em que a maioria defendia, por princípios teóricos, a centralização e o foco nas orientações dos que comandam.
Logicamente Sem Medo não concordou. Voltando o olhar para Ondina, ele emendou que a sua angústia era em grande parte devida ao fato de travar uma luta entre a razão e o sentimento...
Mais uma vez Mundo Novo pareceu não entender... Mas também já não dava importância às palavras do comandante.
Em silêncio, Ondina baixou os olhos.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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