Sem Medo jantava com Mundo Novo e Ondina...
Os dois guerrilheiros conversavam sobre suas expectativas em relação ao desenrolar do movimento e sobre o futuro de cada um na Angola que surgiria.
Sem Medo dissera que um aparelho burocrático se instalaria e que considerava o rapaz capacitado para as tarefas que o Partido demandaria...
(...)
O rapaz quis saber também o que Sem Medo faria logo
que o tal aparelho se instalasse. O comandante admitiu que nunca soubera
responder àquela questão. O que podia dizer, e deseja que o Mundo Novo
compreendesse, era que a Revolução significava apenas “a metade” do que ele
desejava. Todavia entendia que era o que havia de possível a se realizar no
momento. Disse que conhecia o seu papel e que estaria engajado nele até o fim,
mesmo sabendo que a sua participação devia ser contada como uma “metade inútil”
que parecia não poder se separar de outra “metade útil”.
Mundo
Novo ouviu os argumentos de Sem Medo e respondeu que também ele via a realidade
do mesmo modo. Entendia que o Comunismo não vingaria tão cedo. Considerava ainda
que quando a nova conjuntura triunfasse ele também já não estaria vivo. Talvez
viesse a conhecer uma Angola Socialista, mas entendia que a transformação das
relações de produção demandaria muitos anos de luta.
Sem Medo discordou e garantiu que o campo de atuação
de seu interlocutor era político e, assim sendo, ao mesmo tempo em que lutava
pela libertação do país, contribuía para a construção do Socialismo.
O
jovem quis saber se o comandante não participava da mesma mobilização... Sem
Medo respondeu que podia ser visto como um “aventureiro”, alguém que esperava
que a guerra tivesse foco na transformação dos homens envolvidos... Mas via-se
que os objetivos políticos eram majoritários entre os militantes se sobrepunham
a essa premissa.
Depois
dessa afirmação, Sem Medo citou o grupamento que comandava e destacou que seus
homens não eram “manejados para destruir o inimigo, mas um conjunto de seres
diferentes, individuais, cada um com as suas razões subjetivas de lutar e que,
aliás, se comportam como tal”.
Mundo Novo não conseguiu entender as palavras de Sem Medo.
Este admitiu que que não era fácil compreendê-lo e ele próprio não tinha
condições de explicar-se melhor. Disse que ficava satisfeito quando notava que
um de seus guerrilheiros assumia-se como indivíduo autônomo e de personalidade,
ainda que, para a maioria, esse tipo de personalidade estivesse mais afinada ao
individualismo. O que havia de tão significativo nesse tipo de postura? Para Sem
Medo aquilo indicava o “nascimento do homem novo”, “contra tudo e contra todos,
um homem livre de baixezas e preconceitos”.
É claro que essa transformação podia colocar o “homem novo”
em contradição com a “disciplina e a moral” arraigados no movimento, mas para
Sem Medo o processo valia a pena. Sobre Mundo Novo, ele podia dizer que
compreendia a sua conduta... Tratava-se de uma postura mais afinada com o
momento político do país. Tipos como Mundo Novo, quadros importantes do
movimento, se “serviam dos homens”. Sem Medo possuía um modo de ser que não
admitia a manipulação dos guerrilheiros e militantes, e exatamente por isso
entendia que não podia pertencer ao aparelho. A defesa dessa ética mais “existencialista”
certamente ainda provocaria muitas críticas. Mas será que tudo devia ser
analisado do ponto de vista da culpabilidade?
(...)
Mundo Novo manteve-se pacientemente ouvindo as palavras de
Sem Medo até que se sentiu à vontade para sentenciar que ele só podia estar
desmoralizado. Obviamente se referia ao drama que o comandante devia enfrentar
ao pensar daquele modo libertário num momento em que a maioria defendia, por princípios
teóricos, a centralização e o foco nas orientações dos que comandam.
Logicamente
Sem Medo não concordou. Voltando o olhar para Ondina, ele emendou que a sua
angústia era em grande parte devida ao fato de travar uma luta entre a razão e
o sentimento...
Mais uma vez Mundo Novo pareceu não entender... Mas também
já não dava importância às palavras do comandante.
Em silêncio, Ondina baixou os olhos.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/05/mayombe-de-pepetela-o-mecanico-do-kimbo.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto