Sem Medo calou-se e manteve o aperto de mão do Comissário...
Logo o grupamento que lidou com os morteiros chegou. Todos os homens cercaram o comandante em sua agonia.
(...)
Desde o Sanga, os tugas começaram a disparar morteiros na
direção do Pau Caído... A distância do quartel até aquele sítio era
relativamente curta e o acampamento começou a receber violento bombardeio. Entre
os guerrilheiros houve agitação, pois evidentemente perceberam que o ataque
contra o Pau Caído estava acontecendo porque os inimigos pensavam que eles
ainda estivessem lá. Provavelmente toda a região seria atacada e por isso
corriam risco.
O consenso era o da retirada imediata. Pangu-A-Kitina
disse que Sem Medo não tinha a menor condição de sair, pois os ferimentos eram
graves demais.
(...)
De
repente, um vento leve soprou folhas e flores brancas e de suave aroma... A
folhagem da mafumeira caiu sobre o grupo... Sem Medo perguntou se era neve
sobre o Mayombe... Foi um “dizer poético”, algo como a sua despedida anunciada
pelas folhas mortas... O Comissário ainda mais apertou-lhe a mão, como que a
querer transmitir-lhe força para que continuasse a respirar...
É Pepetela quem faz a síntese do momento: “Mas a vida
de Sem Medo esvaía-se para o solo do Mayombe, misturando-se às folhas em
decomposição”.
(...)
Os
obuses passaram a cair cada vez mais perto de onde os guerrilheiros estavam. Eles
ainda mais se agitaram. O Comissário Político percebeu e gritou que ninguém sairia.
Sem Medo teve força para dizer que era preciso deixar os camaradas seguirem,
pois ele se sentia bem onde estava e não podia se tornar num estorvo para os que
dariam continuidade à luta...
O
local parecia ideal para se aguardar a morte... Seus lábios já não se mexiam. O
comandante estava deixando a existência...
(...)
Ainda pôde contemplar uma amoreira que se destacava bem à
sua frente. Em seus estertores, a analisou... Notou que seu tronco imponente
elevava sua copa à altura da folhagem de muitas outras árvores. No alto, os
vários tons de verde confundiam, pois se misturavam. Na base, o tronco se agigantava
e se diferenciava dos demais. Não havia como não notar a imponência do tronco
que sustentava a “amoreira gigante”...
Os seres humanos são como aquelas árvores... Alguns se
assemelham à amoreira. Seu tronco se afirma... Cada um busca se afirmar durante
a existência...
Num último devaneio, Sem Medo “enxergou” o rosto do
mecânico no tronco a sorrir-lhe...
(...)

Há apenas cinquenta metros dali um obus disparado pelos
inimigos provocou violento estrago. Instintivamente, os camaradas se prepararam
para a retirada... Mas o Comissário os impediu furiosamente e, com a AKA
preparada para o disparo, gritou como louco... Perguntou se não entendiam que o
Sem Medo estava morto.
Os homens olharam para o rosto do cadáver... Não conseguiram
entender a expressão de sorriso... Sorria para a vida ou para a morte?
Muatiânvua
disse que tinham de partir imediatamente. O Comissário ainda mais se indignou.
Protestou dizendo que Sem Medo tinha muito apreço por Muatiânvua. Seria
possível que quisessem se retirar sem enterrar o comandante?
(...)
Ekuikui protestou garantindo que a ideia era uma
loucura...
Argumentou
que não possuíam pás ou enxadas... E o pior de tudo era saber que as bombas
inimigas estavam caindo cada vez mais próximas...
Sugeriu que podiam carregá-lo para outra área.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto