O Comissário Político, o João Comissário, não se conformou ao notar que os camaradas se mostravam dispostos a se retirarem sem enterrar o bravo Sem Medo...
Ekuikui quis mostrar que a ideia de sepultar o Sem Medo na área que vinha sendo bombardeada pelos tugas era loucura... Ainda mais porque não possuíam pás ou enxadas... Vimos que ele sugeriu carregarem o cadáver para outro sítio.
(...)
O Comissário vociferou que não tinham o direito de
transportar o Sem Medo. Disse que a homenagem que podiam fazer era cavarem uma
cova ali mesmo, nem que tivessem de usar os punhais e as mãos.
Totalmente transtornado, atirou-se de joelhos bem ao
lado do comandante e começou a golpear a terra com o seu punhal... Os demais
fizeram o mesmo e logo uma vala se abriu. Eles nem notaram que as explosões dos
artefatos inimigos se tornaram cada vez mais distantes de onde estavam.
(...)
Além
do corpo de Sem Medo, depositaram também o de Lutamos na vala... O Comissário
nada disse... Nenhuma oração, nenhum discurso... Ekuikui e Verdade não
conseguiram segurar as lágrimas.
O Chefe de Operações resolveu se pronunciar... Disse
que Lutamos era cabinda e morreu tentando salvar um kimbundo, o Comissário...
Sem Medo, um kikongo, morreu tentando fazer o mesmo. Encerrou sua fala sentenciando
que os episódios eram grandes lições para todos.
Milagre
disse que Sem Medo havia sido um grande comandante. E que também Lutamos havia
sido um grande combatente. O rapaz deu alguns passos e atirou com sua bazuca
contra o tronco da amoreira... Logo os demais camaradas seguiram o seu exemplo
e dispararam rajadas contra o mesmo alvo.
Flores
de mafumeira caíram...
(...)
A área do Mayombe que havia sido bombardeada voltaria a se
recuperar logo que os homens em guerra se mudassem para outro sítio.
Fim do Capítulo V, cujo título é “A Amoreira”.
(...)
Há um epílogo reservado à narrativa pessoal do Comissário
Político.
Logo
no início, confessa que a morte do Sem Medo o transformara. Aos vinte e cinco
anos concluía que a metamorfose pela qual havia passado fora das mais
dolorosas. Sentiu demais a perda do grande líder. Pessoalmente, sabia o quanto
se espelhava em Sem Medo, cuja personalidade bem podia representar ele próprio no
futuro.
Haveria algo mais adequado ao Sem Medo do que sua morte e
sepultamento no Mayombe? Talvez fosse mesmo um “homem fora de seu tempo”,
típico dos heróis de tragédias.
(...)
Uma mudança se processara...
O
João Comissário reconhecia que havia evoluído, e que seu processo particular
havia sido bem traumático, afinal perdera o amigo. Outros vivenciam “ritos de
passagem” mais tranquilamente... Muitos são os que se dedicam à produção de
textos, e isso os livra de suas “antigas peles”; há os que iniciam nova vida ao
se mudarem para outro país; alguns decidem abandonar as parceiras e se envolvem
com novas amantes...
(...)
Vemos o Comissário longe do Mayombe.
A
missão reservada para o Sem Medo logo após a última ação da Base foi assumida por
ele... Marchou por um mês com novos camaradas e se distanciou cerca de mil
quilômetros, alcançando o Bié.
Em
novas paragens refletia sobre o passado e sobre o futuro... Pensava no quão irrisória
é a existência de cada um, e no quanto, apesar disso, nossas vidas marcam “o
avanço do tempo”.
O Comissário se via pensando como o Sem Medo pensava...
Lembrou que “a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no deserto”.
Os homens estão distribuídos pelos dois lados e bem poucos deles conseguem discernir
esse “caminho de areia no meio da areia”... Ele próprio se colocava entre os
esclarecidos. Evidentemente devia isso ao Sem Medo.
O “mestre comandante” insistia que o caminho se escondia
no deserto e ria dos que imaginavam que podiam discernir com facilidade um
trilho nítido “que corta o verde do Mayombe.
Enfim o Comissário também podia admitir: “Não há trilhos
amarelos no meio do verde”...
Fim.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto