sexta-feira, 23 de maio de 2014

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – assim como Henri, Anne também se decepcionou ao constatar que a idealizada União Soviética escravizava; para Robert, não denunciar é tornar-se cúmplice, mas a denúncia também resulta em cumplicidade

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/05/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_22.html antes de ler esta postagem:

Aqueles que acompanham o desenrolar da história em Os Mandarins percebem que os fatos são revisitados... Isso acontece porque, conforme os capítulos avançam, assistimos às ações de Anne e Henri alternadamente. Estamos num ponto em que, após retornar da América, Anne se inteirou dos eventos relacionados ao dossiê obtido por Scriassine.
O relato sobre a reunião com Peltov (que revelou os documentos bombásticos sobre os campos de concentração soviéticos), ocasião em que o foco estava em Henri, deixou claro que Anne não esteve presente.
Seguimos com a trama... Vimos que ela participou da análise dos papéis junto a Robert... Evidentemente ficou chocada com a semelhança entre o que viu nos documentos e os campos nazistas...
Uma retomada de http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/12/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_12.html nos mostrará que Scriassine pretendia que Robert tornasse públicas as denúncias apresentadas (Samazelle e Lambert, que também participaram da reunião, se mostraram indignados com os soviéticos, interessados na publicação imediata e também em investigar mais apuradamente para convencer Dubreuilh)... Vimos que Henri saiu arrasado das discussões. Ele não suportou a conclusão sobre a utilização dos mesmos mecanismos de opressão dos inimigos em plena União Soviética.
(...)
Então estamos neste ponto em que Anne dialoga com o marido a respeito da papelada... Depois de prolongado silêncio, ela quis saber a opinião dele... Robert admitiu que muito do que estava apresentado devia ser verdadeiro.
Anne sabia que ele não tinha dado grande importância à reunião do dia seguinte... Participaria muito mais para não parecer omisso aos demais... Para Anne, Robert devia estar abalado pelas revelações, mas não admitiria publicamente.
Ela sabia que ele era assim mesmo. Por volta de 1930 alguns mais chegados comunistas elogiaram o sistema prisional soviético garantindo que aos detidos eram asseguradas condições humanitárias, eram reeducados e realizavam trabalhos úteis, e que os sindicatos também não os abandonavam... Naquela ocasião, Robert esclareceu à esposa que aquela empolgação toda certamente escondia a cruel exploração do trabalho forçado... Enquanto pensava sobre isso, Anne cogitou que talvez aquilo se justificasse pelo fato de o país passar por uma transição, mas após a integração de operários e camponeses ao regime, e após o fim da guerra, não havia como justificar a degradação que se via documentada.
(...)
Os Dubreuilh discutiram os pormenores do que viram... Analisaram “cada cifra, testemunho, hipótese” e até consideraram os exageros e prováveis mentiras... Constataram, porém, que uma verdade se sobressaía: aqueles campos semelhantes aos dos nazistas estavam institucionalizados, e os trabalhadores estavam sendo explorados na condição de criminosos.
Na sequência, Anne quis saber o que Robert faria... Ele respondeu que não sabia. Então ela despejou sua indignação porque acreditava que tinham um papel relevante na denúncia, caso contrário se comportariam como cúmplices.
Dubreuilh se justificou dizendo que necessitava de informações complementares. Anne perguntou o que faria se elas confirmassem as denúncias, mas ele nada respondeu... Ela entendeu aquele silêncio como resignação aos comunistas... Em síntese isso significava renegar os projetos que empreendera desde a libertação (incluindo o SRL e teses apresentadas em artigos e no livro que escrevia).
Anne lembrou-o de que, como intelectual e revolucionário, ele não poderia se esquecer do compromisso com a verdade... Mas Robert estava impaciente e disse que necessitava de mais tempo para refletir.
O almoço foi silencioso... Robert estava perturbado por suas indagações... Anne não se sentia mais tranquila do que ele. Em suas reflexões lamentava que aqueles campos fossem locais de escravização e de morte. E justo na União Soviética!
(...)
Dubreuilh não estava bem. Em vez de se encaminhar para a escrivaninha, propôs um passeio...
Enquanto caminhavam pela tranquila paisagem interiorana, ele disse que “é fácil esquecer o quanto esse mundo tem de duro!”... Mas não era nos campos de concentração soviéticos que ele pensava... Tanto é que na sequência disse que não era errado dizer que o silêncio sobre os documentos obtidos por Peltov o tornaria cúmplice... Mas argumentou que apresentá-los o faria cúmplice daqueles que eram inimigos dos soviéticos... E concluiu que admitia que os campos fossem horríveis, sim, porém “não se deve esquecer que o horror está em toda parte”.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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