À noite, Anne foi tomada por vários temores...
Não podemos dizer que os episódios sobre a indisposição de Lewis no “Delisa” não tivessem sido superados, mas a reconciliação lhe trouxe novas reflexões.
Ele garantiu que a amava, e ela bem sabia que isso era algo que não poderia corresponder.
De modo algum pretendia envolver o seu amado em uma crise emocional.
É por isso que, ao amanhecer, decidiu que deveria falar-lhe a esse respeito.
(...)
Porém, aconteceu que Brogan despertou disposto a
passear pela cidade e a contar-lhe sobre a história que ele conhecia tão bem...
Então Anne não quis ser motivo de nova desavença e permitiu-se ser conduzida
por ele.
Logo após o café, seguiram pelas ruas onde se viam
casebres antigos com carros luxuosos estacionados... Depois passearam de canoa
e beberam Martini no alto de uma torre. Brogan falava com tanta autoridade
sobre o passado de Chicago que dava a impressão de que ele mesmo teria
vivenciado todos os eventos que narrava...
(...)
Logo entardeceu e ele quis saber onde ela gostaria de jantar... Anne
deixou-o à vontade para decidir.

Depois de comprarem o necessário para a refeição (“presunto, salame, uma
garrafa de chianti e pão de ló ao rum”) encaminharam-se para a escada próxima
ao letreiro que vermelhejava... Ao iniciarem a subida, ele a abraçou com força
e mais uma vez declarou que a amava demais...
Nesse momento, Brogan viu que na sacada havia alguém e apressou-se para
saber quem era... Logo ele estava apresentando Maria, uma “velha amiga”, para
Anne.
Ao ver que ele estava acompanhado, Maria foi dizendo que não pretendia
atrapalhá-lo... Enquanto Brogan esclarecia que a presença da outra não
representava nenhum incômodo, Anne viu que Maria era um tipo jovem, só que
notava-se que estava bem descuidada... Sua voz era rouca e seus braços
apresentavam equimoses...
(...)
A francesa queria saber o que aquela intromissão significava exatamente,
já que ela apresenta-se de modo muito familiar... A conversa entre os dois
fluía amigável... Enquanto abria a garrafa, Lewis quis saber se ela teve de
aguardar muito tempo e se não passou por alguma necessidade enquanto o esperou...
Maria respondeu que os vizinhos de baixo a trataram bem e ofereceram café...
Ela parecia fazer questão de dizer que era por causa da consideração que tinham
por ele.
Maria tomou de um só trago um copo cheio de
chianti e falou que tinha coisas importantes a dizer... Brogan esclareceu que
não havia motivos para não falar ali mesmo na presença de Anne. A mulher deu de
ombros ao ouvir que a outra vinha de Paris... Bebeu mais do vinho e emendou que
precisava da ajuda dele...
Enquanto esvaziava
copos, foi falando de uma história um tanto confusa que girava em torno de
casamento, divórcio e “vocação contrariada”... Então Anne entendeu que Maria
era uma escritora (ou tentava escrever) que estava com dificuldade de finalizar
um livro, e estava ali para que Lewis a auxiliasse... Reclamava que no lugar
onde vivia não teria condições de terminar o trabalho...
Anne não compreendia a paciência de Lewis... Ele bem sabia que não
teriam muito tempo mais para ficarem juntos... No entanto, conversava
pacientemente com a intrusa e quis saber se a família dela não poderia
auxiliá-la... Maria deixou claro que só poderia contar com ele... Enquanto
dizia isso, organizava o ambiente colocando os papéis que estavam espalhados
num cesto de lixo.
(...)
Brogan demonstrava sua preocupação... Perguntou
se ela não queria jantar com eles porque era isso o que fariam... Maria disse
que comera sanduíches de queijo... Depois ele quis saber onde ela dormiria, e ela
respondeu que passaria a noite acordada porque tinha tomado muitas xícaras de
café... Maria emendou que só passaria a noite ali se a companhia estrangeira
fosse mandada embora...
Ele divertiu-se com a exigência estapafúrdia... Mas
Anne ficou pensando sobre como ele ficaria livre para curtir várias mulheres
livres que o admiravam depois que ela se fosse...
(...)
Maria voltou-se para Anne e pediu que ela fosse embora, pois já fazia
dez anos que eles não se viam... Lewis acabou com a graça ao dizer que Anne não
sairia porque ela morava ali, já que eram casados... Depois disso, Maria bebeu
do chianti abocanhando o gargalo da garrafa e pediu uma navalha... Depilou
pernas e axilas ali mesmo enquanto dizia que estava pronta para se casar com um
negro, pois “trabalhava como um deles”.
(...)
Maria terminou a tarefa a que se impôs... Brogan fez questão de
acompanhá-la.
Logo ele estaria de volta... Tempo suficiente para Anne fumar um cigarro
e pensar naquele tipo estranho, evidentemente egresso de algum asilo
psiquiátrico... A francesa arrumou a mesa e ficou a imaginar como seria a sua
conversa com Lewis...
De fato, Brogan retornou dizendo que colocou
Maria num táxi que a levaria ao manicômio de onde tinha saído à tarde daquele
dia.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/05/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_21.html
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço
Prof.Gilberto