Brogan foi solícito. Aceitou prontamente sair pelas ruas de Chicago com Anne... Para ela, o passeio e a companhia do rapaz eram mais do que a estadia no hotel ou as conversas com as damas e senhores que o pessoal do congresso havia colocado à sua disposição.
(...)
O frio era demasiado, e o próprio Brogan sofria com ele. Explicou que
suas orelhas estavam congeladas... Anne levou em consideração que a paisagem
contemplada se repetia (ruas parecidas, velhos chalés, terrenos baldios e o
“frio por toda parte”), então topou entrarem num bar para se aquecerem regados
por alguma bebida... Anne tomou um Bourbon, ele pediu ginger ale.
Saíram do bar, mas o frio parecia ter
aumentado... Decidiram entrar em outro e assim puderam se conhecer melhor...
Conversaram, e Anne ficou sabendo que o rapaz havia participado da campanha em
Ardennes logo depois do desembarque... Ele queria saber a respeito de Paris,
sobre o tempo de ocupação e as condições dos franceses durante a guerra. Para
Anne, Brogan parecia disposto a falar, mas se mostrava confuso ao tratar de si.
Os trechos selecionados de Beauvoir nos dão uma noção
exata do personagem:
Brogan era um tipo nascido “ao sul
de Chicago, filho de um pequeno merceeiro de origem finlandesa e de uma judia
húngara. Tinha vinte e sete anos na época da grande crise (1929) e havia vagabundeado através da América,
escondido em camionetas de mercadorias, alternando-se como vendedor ambulante,
mergulhador, servente, ferreiro, removedor de terras, pedreiro, vendedor e, em
caso de necessidade, ladrão. Num lugar de muda de cavalos, perdido no Arizona,
onde era lavador de copos, havia escrito uma novela, que uma revista de
esquerda publicou. Então, escreveu outras. Desde a aceitação do seu primeiro
romance, um editor lhe dava uma pensão, que lhe permitia viver”.
Anne demonstrou interesse em ler o romance do jovem
americano que acabara de conhecer...
Brogan garantiu que o próximo seria
melhor, mas ela argumentou que o do relato já estava escrito e, de fato,
despertava mais curiosidade por ter sido o primeiro de sua carreira
intelectual... O rapaz dirigiu-se a um telefone e, no mesmo instante, garantiu
que naquela mesma tarde Anne teria um exemplar em seu hotel... Ela agradeceu
demonstrando sinceridade.
A dedicação do outro fez Anne admirá-lo... Ela já vinha notando que ele
se tratava mesmo de um tipo digno de admiração. Um escritor americano
esquerdista que se fez por si mesmo... Brogan era modesto e ávido ao mesmo
tempo, não se prendia à vida, mas vivia com intensidade.
A francesa quis saber de onde vinha o seu desejo e habilidade de
escrever... O rapaz explicou que desde pequeno já brincava com palavras,
figuras que recortava e letras de forma. É claro que Anne queria outra
explicação, então ele esclareceu que escrevia sobre os tipos diferentes que
conhecia... Escrevia de modo a que as pessoas conhecessem os estilos diferentes
de vida levados pelos demais... Isso tinha a ver também com a sua decepção em
relação às mentiras que todos insistiam em dizer a respeito de si mesmos...
Brogan explicou que se cansou de ouvir mentiras, assim, escrever era uma forma
de escancarar as verdades sobre os “modos de viver” diferentes do seu.
Anne viu que, assim como Robert e Henri, Brogan gozava certa acomodação...
Escrever, falar ao rádio e em meetings
protestando contra situações de abuso... De certa forma, intelectuais como ele
estavam bem seguros porque conheciam sua condição de impotência no país que
emergia como protagonista no pós-guerra.
(...)
Então Anne perguntou se ele possuía amigos que também viviam de escrever
livros... O anfitrião disse que alguns mais chegados se encantaram ao vê-lo
ganhar dinheiro com a publicação, principalmente porque entenderam que a
atividade proporcionava-lhe a confortável condição de não precisar se esforçar
demais... Um deles chegou a datilografar umas quinhentas páginas e desembolsou
significativa soma para a impressão... A esposa o proibiu de insistir na
atividade, restando-lhe voltar a bater carteiras, como muitos de seus
conhecidos...
Anne quis saber mais a esse respeito e ele
respondeu que em Chicago havia muitos de seus conhecidos que se dedicavam a essa
prática para sobreviver...
Mas não, Brogan não se enturmava com mafiosos. E
a respeito deles falou muito mal, principalmente de suas relações com políticos
e policiais... E sobre como se dedicavam a destruir greves e a organização dos
trabalhadores.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/05/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-anne_5.html
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto