Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-receptividade-de.html antes
de ler esta postagem:
Assim que Winston sugeriu a possibilidade de
alugar o quarto sobre a loja de antiguidades, Júlia concordou. Mas também ela
levou em consideração que podiam estar fazendo uma loucura que equivalia a
darem passos na direção do próprio túmulo.
Enquanto a aguardava no
quarto, ele pensou também “nos porões do Ministério do Amor” e achou curioso
que aquele horror importunasse sua consciência com certa frequência. Isso tinha
a ver com a certeza de que o pior seria inevitável, tão certo quanto “99 preceder
100”. Talvez devesse se esforçar para não “sofrer por antecipação”, mas
inconscientemente se via problematizando como que a “encurtar a vida”.
(...)
Interrompeu a reflexão carregada de maus pensamentos ao ouvir passos que
subiam a escada... Logo Júlia abriu a porta... Ela trazia a mesma mochila de
couro marrom que usualmente transportava de um lado para outro no Ministério...
A primeira intenção de Winston foi a de abraçá-la, mas ela o afastou pedindo
que aguardasse até que visse o que havia trazido para o encontro.
Júlia viu o Café Vitória e
exclamou que não podia crer que ele havia trazido aquele pó horroroso.
Disse-lhe que podia levá-lo para casa. Então abriu a bagagem, tirou algumas
ferramentas que estavam por cima até expor pacotes de aroma inconfundível...
Ele adivinhou que era “açúcar de verdade”, nada daquelas “pastilhas de
sacarina” que usavam como adoçante.
E mais foi retirado por ela
da mochila de ferramentas: um “pão branco e decente”, não a “broa insossa” que
consumiam cotidianamente; um pote de geleia; “uma lata de leite”. E por fim,
além de uma pequena embalagem de chá, um pacote de “café de verdade” muito bem
enrolado para que o espetacular aroma não escapasse pelo caminho.
O cheiro do pó preencheu o
quarto. Winston ficou maravilhado ao sentir o aroma que recordava a sua
infância de uma maneira que ele não podia explicar. A pureza do café denunciada
pelo aroma parecia associar-se a outras evocações como a movimentação de uma
família por sua casa ou pela rua, e a atmosfera tomada pelo delicioso cheiro...
Algo que se podia perder assim que a experiência olfativa se encerrasse.
Como não podia deixar de
ser, ele não conseguiu esconder sua admiração e espanto... Júlia explicou que o
pacote continha um quilo do puro café consumido pelo Partido Interno. Disse que
não havia nada que os “suínos” não possuíssem. Mas felizmente podia contar com
a colaboração de alguns garçons e empregados que se dispunham a surrupiar
algumas daquelas preciosidades.
Winston quis conferir o chá
e picotou a embalagem... Júlia confirmou que se tratava de chá “de verdade”, e
não “folhas de amora”. Numa tentativa de explicação, disse que tudo indicava
que a Oceania havia conquistado a Índia.
(...)
Depois de expor o farto conteúdo da mochila, Júlia pediu ao namorado
para que virasse as costas para ela... Evidentemente tinha uma surpresa, pois advertiu
que só devia se virar depois que lhe pedisse.
Winston distraiu-se olhando para a parte da cortina que tinha tecido
transparente... Percebeu que a mulher dos braços grossos continuava sua tarefa
com os panos que havia lavado. Novamente se pôs a cantar:
"Dizem que o tempo tudo cura; Dizem que sempre se
pode esquecer;
Mas os sorrisos e lágrimas, anos a fio; Ainda fazem meu coração sofrer."
Mas os sorrisos e lágrimas, anos a fio; Ainda fazem meu coração sofrer."
Ele pensou a respeito da
existência daquele tipo de vida simples... A mulher conhecia a tola canção e
dedicava o melhor de sua voz para interpretá-la. Certamente estava feliz e dava
a entender que não se importaria se a noite se tornasse “infindável”, tampouco
se incomodaria se suas obrigações com as roupas para lavar não se esgotassem...
Podia permanecer por “séculos” a pendurar fraudas e a cantarolar aquelas
bobagens.
Seria o caso de se perguntar sobre o motivo de nunca ter visto os
membros do Partido cantando espontaneamente como ela... Certamente seria um evento
de “excentricidade perigosa” para eles. Já entre os pobres havia inúmeras
carências e talvez devesse concluir que “apenas quando as pessoas estão
próximas da fome que sentem desejo de cantar”.
(...)
Júlia o autorizou a se
virar... Ao vê-la quase não a reconheceu. Sinceramente achava que ela estaria
sem roupas. Mas, em vez dessa surpresa, encontrou-a transformada por uma
maquiagem. Pelo visto, tinha aproveitado para passar em alguma lojinha de
cosméticos no bairro proletariado e comprou um estojo completo... Os lábios
estavam tingidos por um batom de tom forte, e “havia ruge nas faces, pó de
arroz no nariz e um toque de tinta nos olhos”.
A maquiagem não estava bem
feita, mas era preciso admitir que a pintura proporcionara traços mais sensuais
para a jovem. Winston jamais imaginara uma mulher do Partido usando
cosméticos... Realmente aprovou a iniciativa da namorada que a deixara mais
feminina, bonita e atraente.
Ainda
vestia o macacão e exibia o cabelo curto, detalhes que destoavam e ao mesmo
tempo tornavam a transformação ainda mais evidente.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-perfume-identico.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto