sexta-feira, 3 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell – aguardando a chegada de Júlia e refletindo a respeito dos perigos que corriam por decidirem manter encontros no quarto sobre a loja de antiguidades; uma mochila de ferramentas repleta dos melhores e exclusivos mantimentos extraídos do Partido Interno; a existência da gente simples e carregada de necessidades também era marcada pela espontaneidade e alegria dos afazeres cotidianos; uma Júlia “mais feminina”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-receptividade-de.html antes de ler esta postagem:

Assim que Winston sugeriu a possibilidade de alugar o quarto sobre a loja de antiguidades, Júlia concordou. Mas também ela levou em consideração que podiam estar fazendo uma loucura que equivalia a darem passos na direção do próprio túmulo.
Enquanto a aguardava no quarto, ele pensou também “nos porões do Ministério do Amor” e achou curioso que aquele horror importunasse sua consciência com certa frequência. Isso tinha a ver com a certeza de que o pior seria inevitável, tão certo quanto “99 preceder 100”. Talvez devesse se esforçar para não “sofrer por antecipação”, mas inconscientemente se via problematizando como que a “encurtar a vida”.
(...)
Interrompeu a reflexão carregada de maus pensamentos ao ouvir passos que subiam a escada... Logo Júlia abriu a porta... Ela trazia a mesma mochila de couro marrom que usualmente transportava de um lado para outro no Ministério... A primeira intenção de Winston foi a de abraçá-la, mas ela o afastou pedindo que aguardasse até que visse o que havia trazido para o encontro.
Júlia viu o Café Vitória e exclamou que não podia crer que ele havia trazido aquele pó horroroso. Disse-lhe que podia levá-lo para casa. Então abriu a bagagem, tirou algumas ferramentas que estavam por cima até expor pacotes de aroma inconfundível... Ele adivinhou que era “açúcar de verdade”, nada daquelas “pastilhas de sacarina” que usavam como adoçante.
E mais foi retirado por ela da mochila de ferramentas: um “pão branco e decente”, não a “broa insossa” que consumiam cotidianamente; um pote de geleia; “uma lata de leite”. E por fim, além de uma pequena embalagem de chá, um pacote de “café de verdade” muito bem enrolado para que o espetacular aroma não escapasse pelo caminho.
O cheiro do pó preencheu o quarto. Winston ficou maravilhado ao sentir o aroma que recordava a sua infância de uma maneira que ele não podia explicar. A pureza do café denunciada pelo aroma parecia associar-se a outras evocações como a movimentação de uma família por sua casa ou pela rua, e a atmosfera tomada pelo delicioso cheiro... Algo que se podia perder assim que a experiência olfativa se encerrasse.
Como não podia deixar de ser, ele não conseguiu esconder sua admiração e espanto... Júlia explicou que o pacote continha um quilo do puro café consumido pelo Partido Interno. Disse que não havia nada que os “suínos” não possuíssem. Mas felizmente podia contar com a colaboração de alguns garçons e empregados que se dispunham a surrupiar algumas daquelas preciosidades.
Winston quis conferir o chá e picotou a embalagem... Júlia confirmou que se tratava de chá “de verdade”, e não “folhas de amora”. Numa tentativa de explicação, disse que tudo indicava que a Oceania havia conquistado a Índia.
(...)
Depois de expor o farto conteúdo da mochila, Júlia pediu ao namorado para que virasse as costas para ela... Evidentemente tinha uma surpresa, pois advertiu que só devia se virar depois que lhe pedisse.
Winston distraiu-se olhando para a parte da cortina que tinha tecido transparente... Percebeu que a mulher dos braços grossos continuava sua tarefa com os panos que havia lavado. Novamente se pôs a cantar:

                   "Dizem que o tempo tudo cura; Dizem que sempre se pode esquecer;
Mas os sorrisos e lágrimas, anos a fio; Ainda fazem meu coração sofrer."

Ele pensou a respeito da existência daquele tipo de vida simples... A mulher conhecia a tola canção e dedicava o melhor de sua voz para interpretá-la. Certamente estava feliz e dava a entender que não se importaria se a noite se tornasse “infindável”, tampouco se incomodaria se suas obrigações com as roupas para lavar não se esgotassem... Podia permanecer por “séculos” a pendurar fraudas e a cantarolar aquelas bobagens.
Seria o caso de se perguntar sobre o motivo de nunca ter visto os membros do Partido cantando espontaneamente como ela... Certamente seria um evento de “excentricidade perigosa” para eles. Já entre os pobres havia inúmeras carências e talvez devesse concluir que “apenas quando as pessoas estão próximas da fome que sentem desejo de cantar”.
(...)
Júlia o autorizou a se virar... Ao vê-la quase não a reconheceu. Sinceramente achava que ela estaria sem roupas. Mas, em vez dessa surpresa, encontrou-a transformada por uma maquiagem. Pelo visto, tinha aproveitado para passar em alguma lojinha de cosméticos no bairro proletariado e comprou um estojo completo... Os lábios estavam tingidos por um batom de tom forte, e “havia ruge nas faces, pó de arroz no nariz e um toque de tinta nos olhos”.
A maquiagem não estava bem feita, mas era preciso admitir que a pintura proporcionara traços mais sensuais para a jovem. Winston jamais imaginara uma mulher do Partido usando cosméticos... Realmente aprovou a iniciativa da namorada que a deixara mais feminina, bonita e atraente.
Ainda vestia o macacão e exibia o cabelo curto, detalhes que destoavam e ao mesmo tempo tornavam a transformação ainda mais evidente.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas