Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-ao-que-tudo.html antes
de ler esta postagem:
Certa vez Winston acordou bem agitado por causa
de um sonho... Acabou despertando Júlia que, ainda sonolenta, se aproximou do
namorado e notou lágrimas em seus olhos. Ele explicou que havia tido um sonho
bem complicado que se relacionava a uma lembrança de infância, algo que
incomodou sua consciência mesmo depois de acordado.
De olhos fechados e de
costas para Júlia pôs-se a falar a respeito da experiência onírica.
(...)
Para Winston, pesava o fato de o sonho ter escancarado um momento
específico de sua vida, tão claramente “como uma paisagem numa tarde de verão,
depois da chuva”.
Naturalmente o sonho
continha outros elementos que faziam parte dos fragmentos de seus dias... Não
por acaso relatou que tudo havia ocorrido no interior do peso de vidro, sendo
sua superfície a abóbada do céu. A realidade que se passava no interior era
luminosa e clara, como de fato era o objeto que ele tanto admirava...
Sem precisar um início,
disse que no sonho via a mãe fazer um gesto com o braço, algo muito parecido
com o trecho do filme a que assistira na noite anterior ao dia em que iniciara
o diário, no qual a judia tentava “proteger o filhinho contra as balas, antes
que os helicópteros fizessem explodir os dois” (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-mesmo-vacilante.html).
Winston disse à Júlia que
até então pensava que tinha assassinado a própria mãe. Sem estar totalmente
desperta, a moça perguntou por que a havia assassinado. Ele explicou que não
era bem isso, já que não se tratava de uma ocorrência física... Emendou que o
sonho trouxera-lhe o momento em que a vira pela última vez e depois que acordou
vários pequenos episódios relacionados à perda tomaram-lhe a consciência.
(...)
As lembranças dos últimos
instantes vivenciados com a mãe estiveram ofuscadas por muito tempo em sua
consciência. Certamente foram deliberadamente excluídas de sua memória por
terem sido traumáticas.
Talvez tivesse uns dez anos
quando tudo ocorreu... Winston não sabia quanto tempo se passara desde que seu
pai havia desaparecido, apenas lembrava-se que a época era de muita tensão e
precariedade devido aos muitos ataques aéreos que a cidade sofria. Exatamente
por isso viviam alarmados em busca de proteção nas estações do metrô. O caminho
até o subterrâneo era sempre carregado por destroços e marcado pela presença de
jovens uniformizados espalhando “proclamações ininteligíveis”. O som das
metralhadoras e de outros artefatos bélicos era constante e podia ser ouvido
por toda parte, inclusive nas longas filas formadas junto às padarias e outros
estabelecimentos onde “nunca havia o suficiente” para todos.
Os escombros e latas de lixo eram revirados por Winston e outros garotos
de sua idade em busca de nacos de verduras, cascas de batatas e pedaços de
pão... Também aguardavam com ansiedade a passagem de caminhões que
transportavam ração para gado, e que podiam eventualmente deixar cair restos
pelo caminho.
A respeito do desaparecimento do pai, Winston lembrava que a mãe não
manifestara surpresa ou rancor... Em vez disso, ela parecia ter se desanimado
em relação à labuta pela sobrevivência, já que em sua opinião ela parecia
esperar que algo de “muito significativo” ocorresse. Não podia deixar de cuidar
dos afazeres da casa e das necessidades dos dois filhos, então “cozinhava,
lavava, remendava, fazia a cama, varria, espanava - sempre muito devagar e com
uma curiosa economia de gestos supérfluos, como uma figura criada por um
artista e que se movesse por si mesma”.
A mãe se tornara apática e permanecia sentada na
cama durante muito tempo a cuidar da pequena filha, que era mirrada e de
aspecto doentio. Winston calculava que
ela contava dois ou três anos e achava que sua aparência lembrava a de um
pequeno e indefeso macaco. Ela exigia mesmo muitos cuidados, por isso era raro
a mãe abraçá-lo, mas, quando o fazia, “apertava-o contra o seio por longo
tempo” sem nada dizer.
Mesmo sem compreender
exatamente o que ocorria, Winston entendia que os silenciosos abraços da mãe se
relacionavam ao algo “muito significativo que não tardaria a ocorrer” e que ela
não tinha como explicar a ele. De resto, as condições do escuro quarto em que
moravam eram as mais precárias: “Uma cama de cabeceira branca” ocupava a metade
do cômodo que possuía uma lareira com fogareiro a gás e uma prateleira para
acomodar uma lataria sempre vazia; do lado de fora ficava a pia marrom...
(...)
Winston conseguia se lembrar da imagem da mãe, de seu porte grandioso
como o de estátuas, inclinada sobre a panela onde preparava a comida possível.
Essa
memória trazia-lhe ainda a própria condição de permanentemente esfomeado e
intolerante em relação à falta de alimentos. Não por acaso, constantemente
brigava com a mãe e disputava as mínimas porções com a frágil e indefesa irmã.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-segunda-parte-do.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto