sexta-feira, 17 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - primeira parte de um sonho sobre as tristes condições da infância, desaparecimento do pai e sofrimento da mãe para manter Winston e sua pequena e frágil irmã em tempos de guerra, desabastecimento e perseguições políticas; um escuro e insalubre quarto e o abraço da mãe como o da mãe judia do violento filme

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-ao-que-tudo.html antes de ler esta postagem:

Certa vez Winston acordou bem agitado por causa de um sonho... Acabou despertando Júlia que, ainda sonolenta, se aproximou do namorado e notou lágrimas em seus olhos. Ele explicou que havia tido um sonho bem complicado que se relacionava a uma lembrança de infância, algo que incomodou sua consciência mesmo depois de acordado.
De olhos fechados e de costas para Júlia pôs-se a falar a respeito da experiência onírica.
(...)
Para Winston, pesava o fato de o sonho ter escancarado um momento específico de sua vida, tão claramente “como uma paisagem numa tarde de verão, depois da chuva”.
Naturalmente o sonho continha outros elementos que faziam parte dos fragmentos de seus dias... Não por acaso relatou que tudo havia ocorrido no interior do peso de vidro, sendo sua superfície a abóbada do céu. A realidade que se passava no interior era luminosa e clara, como de fato era o objeto que ele tanto admirava...
Sem precisar um início, disse que no sonho via a mãe fazer um gesto com o braço, algo muito parecido com o trecho do filme a que assistira na noite anterior ao dia em que iniciara o diário, no qual a judia tentava “proteger o filhinho contra as balas, antes que os helicópteros fizessem explodir os dois” (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-mesmo-vacilante.html).
Winston disse à Júlia que até então pensava que tinha assassinado a própria mãe. Sem estar totalmente desperta, a moça perguntou por que a havia assassinado. Ele explicou que não era bem isso, já que não se tratava de uma ocorrência física... Emendou que o sonho trouxera-lhe o momento em que a vira pela última vez e depois que acordou vários pequenos episódios relacionados à perda tomaram-lhe a consciência.
(...)
As lembranças dos últimos instantes vivenciados com a mãe estiveram ofuscadas por muito tempo em sua consciência. Certamente foram deliberadamente excluídas de sua memória por terem sido traumáticas.
Talvez tivesse uns dez anos quando tudo ocorreu... Winston não sabia quanto tempo se passara desde que seu pai havia desaparecido, apenas lembrava-se que a época era de muita tensão e precariedade devido aos muitos ataques aéreos que a cidade sofria. Exatamente por isso viviam alarmados em busca de proteção nas estações do metrô. O caminho até o subterrâneo era sempre carregado por destroços e marcado pela presença de jovens uniformizados espalhando “proclamações ininteligíveis”. O som das metralhadoras e de outros artefatos bélicos era constante e podia ser ouvido por toda parte, inclusive nas longas filas formadas junto às padarias e outros estabelecimentos onde “nunca havia o suficiente” para todos.
Os escombros e latas de lixo eram revirados por Winston e outros garotos de sua idade em busca de nacos de verduras, cascas de batatas e pedaços de pão... Também aguardavam com ansiedade a passagem de caminhões que transportavam ração para gado, e que podiam eventualmente deixar cair restos pelo caminho.
A respeito do desaparecimento do pai, Winston lembrava que a mãe não manifestara surpresa ou rancor... Em vez disso, ela parecia ter se desanimado em relação à labuta pela sobrevivência, já que em sua opinião ela parecia esperar que algo de “muito significativo” ocorresse. Não podia deixar de cuidar dos afazeres da casa e das necessidades dos dois filhos, então “cozinhava, lavava, remendava, fazia a cama, varria, espanava - sempre muito devagar e com uma curiosa economia de gestos supérfluos, como uma figura criada por um artista e que se movesse por si mesma”.
A mãe se tornara apática e permanecia sentada na cama durante muito tempo a cuidar da pequena filha, que era mirrada e de aspecto doentio.  Winston calculava que ela contava dois ou três anos e achava que sua aparência lembrava a de um pequeno e indefeso macaco. Ela exigia mesmo muitos cuidados, por isso era raro a mãe abraçá-lo, mas, quando o fazia, “apertava-o contra o seio por longo tempo” sem nada dizer.
Mesmo sem compreender exatamente o que ocorria, Winston entendia que os silenciosos abraços da mãe se relacionavam ao algo “muito significativo que não tardaria a ocorrer” e que ela não tinha como explicar a ele. De resto, as condições do escuro quarto em que moravam eram as mais precárias: “Uma cama de cabeceira branca” ocupava a metade do cômodo que possuía uma lareira com fogareiro a gás e uma prateleira para acomodar uma lataria sempre vazia; do lado de fora ficava a pia marrom...
(...)
Winston conseguia se lembrar da imagem da mãe, de seu porte grandioso como o de estátuas, inclinada sobre a panela onde preparava a comida possível.
Essa memória trazia-lhe ainda a própria condição de permanentemente esfomeado e intolerante em relação à falta de alimentos. Não por acaso, constantemente brigava com a mãe e disputava as mínimas porções com a frágil e indefesa irmã.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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