sexta-feira, 10 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell – divagações de Winston e Júlia a respeito de um futuro idealizado e pouco provável; incompatibilidades em relação a um engajamento político contra o regime; falando a respeito das impressões sobre O’Brien e das considerações da jovem em relação às insatisfações que muita gente devia nutrir; revelar-se fanático para rebelar-se secretamente; ideia de que o Partido estava solidificado no poder e sobre a possibilidade de não haver nenhuma guerra

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-bombas-foguete.html antes de ler esta postagem:

Os encontros do casal nunca deixaram de ser arriscados... O caso é que evitavam a pensar sobre os perigos. Mas, de certo modo, a certeza de que em algum momento seriam descobertos os levava a se entregarem desesperadamente. Na maior parte do tempo admitiam que o quarto fosse local seguro, que teriam muito tempo para aproveitá-lo e, na verdade, pareciam sentir-se bem ao se ajustarem a essa ilusão.
Não poucas vezes conversavam a respeito de situações ideais e “escapistas”. Já tinham de passar por algumas dificuldades para chegarem ao seu “santuário”, então concluíam que deviam aproveitá-lo ao máximo até o fim de suas existências... Winston recorria às reflexões sobre o peso de vidro e relacionava a “realidade impenetrável” do objeto à condição a que almejavam, a de um “tempo imobilizado”. Evidentemente tinham de contar com a sorte... Talvez Katherine morresse e alguém os ajudasse com a papelada que possibilitasse a aprovação do casamento... No limite poderiam se suicidar juntos ou dar um jeito de sair de circulação e mudar as fisionomias para que ninguém os pudesse reconhecer, depois adotariam uma existência proletária, trabalhando numa fábrica qualquer e residindo em algum precário bairro afastado do centro.
Essas divagações não tinham a menor possibilidade de concretização, eram tolices, pois sabiam que “não havia fuga”. Até mesmo a ideia do suicídio, que só dependeria deles mesmos, estava descartada porque pretendiam, por instinto, prosseguir experimentando a vida a dois no “presente que não tinha futuro”. Enquanto pudessem permanecer juntos, seguiriam ousando.
(...)
Outro assunto que eventualmente surgia nos diálogos entre Winston e Júlia era sobre a (im)possibilidade de se engajarem no movimento de rebeldia contra o domínio do Partido. A primeira dificuldade estava exatamente em não terem a menor ideia “de como dar o primeiro passo”. Sequer podiam garantir que a “Fraternidade” existisse! Júlia simplesmente não acreditava em qualquer possibilidade de organização que se colocasse contra o regime. De qualquer modo, não teriam como acessar os “agentes do movimento”, pois, se o movimento fosse real, seria também ultrassecreto.
Certa vez, Winston resolveu abrir-se com Júlia a respeito de suas impressões a respeito de O’Brien e à tentação de aproximar-se dele, apresentando-se como inimigo do IngSoc e pedindo-lhe maiores esclarecimentos sobre como proceder. A garota não demonstrou nenhum espanto em relação àquelas ideias audaciosas, pois normalmente tirava conclusões a respeito das pessoas a partir das impressões que tirava de suas aparências.
Júlia encarou com naturalidade o fato de o namorado passar a confiar em O’Brien depois de breve olhada e intuição. É que para ela as pessoas de um modo geral nutriam ódio pelo Partido, e esse bem podia ser o caso do tipo. Ela acreditava que as pessoas tinham a tendência de infringir os regulamentos se se sentissem seguras para isso. Apesar disso, sentenciava que era impossível haver qualquer oposição sistematizada e bem estruturada.
Para ela, o Partido havia inventado muitas coisas apenas para amedrontar a população e manter o seu poder. Entre as invenções estariam Goldstein e os que hipoteticamente se filiariam a ele. Aquilo tudo era uma “grande besteira” que, ao mesmo tempo em que interessava ao Partido, “os militantes fingiam crer”.
É claro que ela se comportava o mais adequadamente possível durante as “manifestações espontâneas” incentivadas pelo Partido e vociferava contra os criminosos, exigindo que fossem executados... Proferia contra nomes de acusados dos quais nunca ouvira falar. Maldizia os crimes que em sua intimidade não acreditava terem sido cometidos.
Ela fazia parte da Liga da Juventude e procurava se destacar nas ações organizadas por ocasião dos julgamentos públicos... Permanecia firme exibindo os cartazes e diante do tribunal participava do coro de “morte aos traidores”.
Adotava postura exemplar durante os “Dois Minutos de Ódio” e se sobressaía em relação aos demais. Obviamente não tinha ideia de quem fosse o Goldstein ou de quais eram suas ideias políticas. E isso se explicava pelo fato de ter crescido depois da Revolução e não ter qualquer memória a respeito das perseguições políticas que ocorreram entre os anos 1950 e 1970.
Também por isso não admitia ser possível que algum grupo se dedicasse à articulação contra o Partido. Este, em sua opinião era invencível e seu poder era algo solidificado... Entendia que o Partido era parte da realidade, ele existia e permaneceria o mesmo para sempre. O que os insatisfeitos como eles podiam fazer? Rebelar-se em segredo, desobedecer às suas orientações, mas sempre secretamente como vinham fazendo... Eventualmente atos violentos isolados podiam ser praticados: “assassinar alguém, dinamitar alguma coisa”.
(...)
O modo como Júlia encarava a realidade dominada pelo Partido a tornava bem mais atenta e “alerta” do que o namorado. Além disso, a propaganda do regime não a afetava do mesmo modo que o influenciava...
Houve certa ocasião em que ele lhe falara alarmado a respeito da guerra da Oceania contra a Eurásia, mas ela disse apenas que não acreditava que havia guerra. E a respeito das bombas-foguete que caíam sobre a cidade, polemizou dizendo que aquilo devia ser obra do próprio governo da Oceania “só para amedrontar a turma”.
Winston jamais raciocinara daquele modo, por isso se espantou com o que Júlia lhe disse. E mais se surpreendeu quando ela garantiu que sentia vontade de gargalhar durante os “Dois Minutos de Ódio”... Por fim, em relação à doutrina do Partido, ela só questionava os princípios quando de algum modo eles a afetavam particularmente. Em relação a outros ensinamentos, que não despertavam sua atenção, estava disposta a não problematizar “simplesmente porque a diferença entre verdade e mentira não lhe parecia importante”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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