Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-bombas-foguete.html antes
de ler esta postagem:
Os encontros do casal nunca deixaram de ser arriscados...
O caso é que evitavam a pensar sobre os perigos. Mas, de certo modo, a certeza
de que em algum momento seriam descobertos os levava a se entregarem
desesperadamente. Na maior parte do tempo admitiam que o quarto fosse local
seguro, que teriam muito tempo para aproveitá-lo e, na verdade, pareciam
sentir-se bem ao se ajustarem a essa ilusão.
Não poucas vezes
conversavam a respeito de situações ideais e “escapistas”. Já tinham de passar
por algumas dificuldades para chegarem ao seu “santuário”, então concluíam que
deviam aproveitá-lo ao máximo até o fim de suas existências... Winston recorria
às reflexões sobre o peso de vidro e relacionava a “realidade impenetrável” do
objeto à condição a que almejavam, a de um “tempo imobilizado”. Evidentemente
tinham de contar com a sorte... Talvez Katherine morresse e alguém os ajudasse
com a papelada que possibilitasse a aprovação do casamento... No limite
poderiam se suicidar juntos ou dar um jeito de sair de circulação e mudar as
fisionomias para que ninguém os pudesse reconhecer, depois adotariam uma
existência proletária, trabalhando numa fábrica qualquer e residindo em algum
precário bairro afastado do centro.
Essas divagações não tinham a menor possibilidade de concretização, eram
tolices, pois sabiam que “não havia fuga”. Até mesmo a ideia do suicídio, que
só dependeria deles mesmos, estava descartada porque pretendiam, por instinto, prosseguir
experimentando a vida a dois no “presente que não tinha futuro”. Enquanto
pudessem permanecer juntos, seguiriam ousando.
(...)
Outro assunto que
eventualmente surgia nos diálogos entre Winston e Júlia era sobre a
(im)possibilidade de se engajarem no movimento de rebeldia contra o domínio do
Partido. A primeira dificuldade estava exatamente em não terem a menor ideia
“de como dar o primeiro passo”. Sequer podiam garantir que a “Fraternidade”
existisse! Júlia simplesmente não acreditava em qualquer possibilidade de
organização que se colocasse contra o regime. De qualquer modo, não teriam como
acessar os “agentes do movimento”, pois, se o movimento fosse real, seria
também ultrassecreto.
Certa vez, Winston resolveu
abrir-se com Júlia a respeito de suas impressões a respeito de O’Brien e à
tentação de aproximar-se dele, apresentando-se como inimigo do IngSoc e
pedindo-lhe maiores esclarecimentos sobre como proceder. A garota não
demonstrou nenhum espanto em relação àquelas ideias audaciosas, pois
normalmente tirava conclusões a respeito das pessoas a partir das impressões
que tirava de suas aparências.
Júlia encarou com
naturalidade o fato de o namorado passar a confiar em O’Brien depois de breve
olhada e intuição. É que para ela as pessoas de um modo geral nutriam ódio pelo
Partido, e esse bem podia ser o caso do tipo. Ela acreditava que as pessoas
tinham a tendência de infringir os regulamentos se se sentissem seguras para
isso. Apesar disso, sentenciava que era impossível haver qualquer oposição
sistematizada e bem estruturada.
Para ela, o Partido havia
inventado muitas coisas apenas para amedrontar a população e manter o seu
poder. Entre as invenções estariam Goldstein e os que hipoteticamente se
filiariam a ele. Aquilo tudo era uma “grande besteira” que, ao mesmo tempo em
que interessava ao Partido, “os militantes fingiam crer”.
É claro que ela se
comportava o mais adequadamente possível durante as “manifestações espontâneas”
incentivadas pelo Partido e vociferava contra os criminosos, exigindo que
fossem executados... Proferia contra nomes de acusados dos quais nunca ouvira
falar. Maldizia os crimes que em sua intimidade não acreditava terem sido
cometidos.
Ela fazia parte da Liga da Juventude e procurava se destacar nas ações
organizadas por ocasião dos julgamentos públicos... Permanecia firme exibindo
os cartazes e diante do tribunal participava do coro de “morte aos traidores”.
Adotava postura exemplar durante os “Dois Minutos de Ódio” e se sobressaía
em relação aos demais. Obviamente não tinha ideia de quem fosse o Goldstein ou
de quais eram suas ideias políticas. E isso se explicava pelo fato de ter
crescido depois da Revolução e não ter qualquer memória a respeito das
perseguições políticas que ocorreram entre os anos 1950 e 1970.
Também por isso não admitia ser possível que
algum grupo se dedicasse à articulação contra o Partido. Este, em sua opinião
era invencível e seu poder era algo solidificado... Entendia que o Partido era
parte da realidade, ele existia e permaneceria o mesmo para sempre. O que os
insatisfeitos como eles podiam fazer? Rebelar-se em segredo, desobedecer às
suas orientações, mas sempre secretamente como vinham fazendo... Eventualmente
atos violentos isolados podiam ser praticados: “assassinar alguém, dinamitar
alguma coisa”.
(...)
O modo como Júlia encarava
a realidade dominada pelo Partido a tornava bem mais atenta e “alerta” do que o
namorado. Além disso, a propaganda do regime não a afetava do mesmo modo que o
influenciava...
Houve certa ocasião em que ele lhe falara alarmado a respeito da guerra
da Oceania contra a Eurásia, mas ela disse apenas que não acreditava que havia
guerra. E a respeito das bombas-foguete que caíam sobre a cidade, polemizou
dizendo que aquilo devia ser obra do próprio governo da Oceania “só para
amedrontar a turma”.
Winston
jamais raciocinara daquele modo, por isso se espantou com o que Júlia lhe disse.
E mais se surpreendeu quando ela garantiu que sentia vontade de gargalhar
durante os “Dois Minutos de Ódio”... Por fim, em relação à doutrina do Partido,
ela só questionava os princípios quando de algum modo eles a afetavam
particularmente. Em relação a outros ensinamentos, que não despertavam sua
atenção, estava disposta a não problematizar “simplesmente porque a diferença entre
verdade e mentira não lhe parecia importante”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-educacao-servico.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto