sexta-feira, 17 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - segunda parte do sonho sobre a infância de triste condição e última vez que vira a mãe; o episódio da pequena ração de chocolate que Winston não aceitou dividir com a mãe e a fragilizada irmã; remorso e desconhecimento acerca do paradeiro das duas; o “gesto protetor do braço da mãe” lhe surgia em outro sonho de agonia, mas a sonolenta Júlia não tinha a menor condição de ouvi-lo

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-primeira-parte-de.html antes de ler esta postagem:

Retomando o sonho...
A intolerância do pequeno Winston o levava a perguntar, sempre aos gritos, a respeito do motivo de não haver mais comida. Vociferava com a mãe e sentia que podia obter o que queria engrossando a voz que, aliás, ele percebia que se tornava mais grave a cada dia.
No momento em que contava essas coisas para Júlia, podia concluir que a mãe sempre considerava que, por ser ele “o rapaz da casa”, devia entregar-lhe mais da comida. Ela fazia isso mesmo, porém ele nunca se mostrava satisfeito e exigia mais. A mãe dizia para ele não ser egoísta e que se lembrasse da pequena irmã doente que também precisava se alimentar.
Por mais que ela implorasse, ele não obedecia. Em vez disso, se comportava com raiva e atirava-se sobre ela para tomar a panela e a colher... Além disso, avançava no prato da pequena para subtrair-lhe as pequenas porções.
(...)
Com amargura, contou à Júlia que já sabia que com suas atitudes condenava a irmãzinha à fome e que, apesar disso, sentia-se no direito de usurpá-la. Achava que tinha de resolver unicamente a fome que sentia e por isso atacava os poucos mantimentos que a mãe guardava na prateleira.
Certa vez distribuíram pequenos tabletes de chocolate aos mais necessitados. A mãe de Winston dividiria a pequena barra que havia recebido em três, mas ele engrossou a voz e gritou que exigia a porção inteira. Ela o interpelou e pediu que não fosse egoísta... Discutiram por muitas horas, o menino gritando queixas enquanto a mãe chorava e implorava por um acordo... A menina permaneceu o tempo todo pendurada nela como se fosse “um filhote de macaco” que, sem nada entender, olhava assustada para o menino. Este, tanto brigou que a mãe acabou dividindo o tablete em quatro e deu-lhe três pedaços. Entregou o último à menina, que parecia não reconhecer o que tinha à mão.
Winston conseguiu lembrar que avançou sobre a irmã e tomou-lhe o pequeno pedaço de chocolate. Na sequência correu para a porta enquanto a mãe o chamava aos berros. Sem poder alcançá-lo, encarou-o silenciosa e tristemente. Ele parecia saber que de algum modo ela estava pensando no que deveria ocorrer em breve. A menina pôs-se a gemer e ela a consolou apertando-a contra o peito.
(...)
O que Winston podia dizer enquanto falava a este respeito com Júlia é que, mesmo apesar de sua pouca idade e falta de sensibilidade, naquele momento parecia saber que a menina estava morrendo. No entanto, resolveu sair em disparada para longe do pequeno quarto. Enquanto fugia, sentia o chocolate derreter-se entre os dedos.
Evidentemente não podia saber, mas o caso é que aquela foi a última vez que viu a mãe... Comeu todo o chocolate e sentiu-se envergonhado, por isso resolveu ficar pelas ruas até que voltasse a sentir fome. Então aconteceu que quando retornou ao quarto não encontrou a mãe nem a pequena irmã...
Até onde ele se lembrava, aquele tipo de desaparecimento se tornara algo cotidiano e normal. As duas desapareceram sem que nada tivesse sido levado do quarto. Nada! Nenhuma roupa, o casaco da mãe ou qualquer utensílio.
(...)
Winston disse à Júlia que havia passado toda vida sem saber ao certo se a mãe havia morrido ou não. Depois de adulto pensou que talvez a tivessem levado para uma colônia de trabalhos forçados. Já a irmã talvez tivesse sido encaminhada a algum orfanato, como foi o caso dele mesmo... Ele lembrou que muitas instituições que recolhiam órfãos surgiram ao tempo da guerra civil, mas comentou que várias vezes pensara que a pequena pudesse ter sido levada com a mãe para o campo correcional ou abandonada em algum lugar para morrer.
O sonho o abalou emocionalmente... Júlia não podia entendê-lo completamente. Primeiro porque continuava sonolenta e caía no cochilo enquanto ouvia a narrativa... Depois porque pertencia a uma geração que não problematizava as perseguições políticas realizadas pelos organismos de repressão do Partido e tampouco os desaparecimentos, mesmo assim o consolou ao ouvi-lo dizer que o sonho permanecia nítido em sua consciência, principalmente o “gesto protetor do braço da mãe”, que “parecia conter todo o seu significado”.

(...)

Ele ainda quis falar “de outro sonho, de dois meses antes”. Este também era sobre a mãe em seu abraço de proteção à filhinha, mas o detalhe é que as duas surgiam afundando em águas escuras após o naufrágio de um navio. Como sabemos, isso também se relaciona a imagens do violento filme que ele havia assistido (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-mesmo-vacilante.html). A mãe o fitou até desaparecer completamente nas profundezas...
Júlia não o ouviu satisfatoriamente, pois continuava sonolenta. Ela virou-se para acomodar-se melhor ao colchão e, sem abrir os olhos, sentenciou que o via “como uma ferinha diabólica” em sua época de criança. Ele concordou que todas as crianças são mesmo terríveis. Na sequência ela deu a entender que diria o que achou de mais importante em toda aquela narrativa, mas logo voltou a adormecer.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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