Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-primeira-parte-de.html antes
de ler esta postagem:
Retomando o sonho...
A intolerância do pequeno
Winston o levava a perguntar, sempre aos gritos, a respeito do motivo de não
haver mais comida. Vociferava com a mãe e sentia que podia obter o que queria
engrossando a voz que, aliás, ele percebia que se tornava mais grave a cada dia.
No momento em que contava essas coisas para Júlia, podia concluir que a
mãe sempre considerava que, por ser ele “o rapaz da casa”, devia entregar-lhe
mais da comida. Ela fazia isso mesmo, porém ele nunca se mostrava satisfeito e
exigia mais. A mãe dizia para ele não ser egoísta e que se lembrasse da pequena
irmã doente que também precisava se alimentar.
Por mais que ela
implorasse, ele não obedecia. Em vez disso, se comportava com raiva e
atirava-se sobre ela para tomar a panela e a colher... Além disso, avançava no
prato da pequena para subtrair-lhe as pequenas porções.
(...)
Com amargura, contou à
Júlia que já sabia que com suas atitudes condenava a irmãzinha à fome e que,
apesar disso, sentia-se no direito de usurpá-la. Achava que tinha de resolver
unicamente a fome que sentia e por isso atacava os poucos mantimentos que a mãe
guardava na prateleira.
Certa vez distribuíram
pequenos tabletes de chocolate aos mais necessitados. A mãe de Winston
dividiria a pequena barra que havia recebido em três, mas ele engrossou a voz e
gritou que exigia a porção inteira. Ela o interpelou e pediu que não fosse
egoísta... Discutiram por muitas horas, o menino gritando queixas enquanto a
mãe chorava e implorava por um acordo... A menina permaneceu o tempo todo
pendurada nela como se fosse “um filhote de macaco” que, sem nada entender,
olhava assustada para o menino. Este, tanto brigou que a mãe acabou dividindo o
tablete em quatro e deu-lhe três pedaços. Entregou o último à menina, que
parecia não reconhecer o que tinha à mão.
Winston conseguiu lembrar
que avançou sobre a irmã e tomou-lhe o pequeno pedaço de chocolate. Na
sequência correu para a porta enquanto a mãe o chamava aos berros. Sem poder
alcançá-lo, encarou-o silenciosa e tristemente. Ele parecia saber que de algum
modo ela estava pensando no que deveria ocorrer em breve. A menina pôs-se a
gemer e ela a consolou apertando-a contra o peito.
(...)
O que Winston podia dizer
enquanto falava a este respeito com Júlia é que, mesmo apesar de sua pouca
idade e falta de sensibilidade, naquele momento parecia saber que a menina
estava morrendo. No entanto, resolveu sair em disparada para longe do pequeno
quarto. Enquanto fugia, sentia o chocolate derreter-se entre os dedos.
Evidentemente não podia saber, mas o caso é que aquela foi a última vez
que viu a mãe... Comeu todo o chocolate e sentiu-se envergonhado, por isso
resolveu ficar pelas ruas até que voltasse a sentir fome. Então aconteceu que
quando retornou ao quarto não encontrou a mãe nem a pequena irmã...
Até onde ele se lembrava, aquele tipo de desaparecimento se tornara algo
cotidiano e normal. As duas desapareceram sem que nada tivesse sido levado do
quarto. Nada! Nenhuma roupa, o casaco da mãe ou qualquer utensílio.
(...)
Winston disse à Júlia que havia passado toda
vida sem saber ao certo se a mãe havia morrido ou não. Depois de adulto pensou
que talvez a tivessem levado para uma colônia de trabalhos forçados. Já a irmã
talvez tivesse sido encaminhada a algum orfanato, como foi o caso dele mesmo...
Ele lembrou que muitas instituições que recolhiam órfãos surgiram ao tempo da
guerra civil, mas comentou que várias vezes pensara que a pequena pudesse ter
sido levada com a mãe para o campo correcional ou abandonada em algum lugar
para morrer.
O sonho o abalou
emocionalmente... Júlia não podia entendê-lo completamente. Primeiro porque continuava
sonolenta e caía no cochilo enquanto ouvia a narrativa... Depois porque
pertencia a uma geração que não problematizava as perseguições políticas
realizadas pelos organismos de repressão do Partido e tampouco os
desaparecimentos, mesmo assim o consolou ao ouvi-lo dizer que o sonho
permanecia nítido em sua consciência, principalmente o “gesto protetor do braço
da mãe”, que “parecia conter todo o seu significado”.
(...)
Ele ainda quis falar “de outro sonho, de dois meses antes”. Este também
era sobre a mãe em seu abraço de proteção à filhinha, mas o detalhe é que as
duas surgiam afundando em águas escuras após o naufrágio de um navio. Como
sabemos, isso também se relaciona a imagens do violento filme que ele havia
assistido (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-mesmo-vacilante.html). A mãe o fitou até
desaparecer completamente nas profundezas...
Júlia
não o ouviu satisfatoriamente, pois continuava sonolenta. Ela virou-se para
acomodar-se melhor ao colchão e, sem abrir os olhos, sentenciou que o via “como
uma ferinha diabólica” em sua época de criança. Ele concordou que todas as
crianças são mesmo terríveis. Na sequência ela deu a entender que diria o que
achou de mais importante em toda aquela narrativa, mas logo voltou a adormecer.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-reflexoes-sobre.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto