quinta-feira, 30 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - o cansaço de todos ao fim da Semana de Ódio; o livro enviado por O’Brien já estava com Winston há seis dias; discurso de ódio numa praça de Londres no sexto dia das festividades, intensa participação dos estudantes ligados aos Espiões, anúncio da guerra contra a Lestásia e louca agitação da multidão contra as faixas e cartazes “adulteradas” pelos agentes de Goldstein


A “Semana do Ódio” foi de muito trabalho para todos... Winston sentiu-se esgotado e ele comparava a própria debilidade à da consistência de uma gelatina. Percebeu que os sentidos estavam mais aguçados pelo esgotamento físico. O macacão pesava mais do que o normal sobre os ombros, e o simples caminhar ou o abrir e fechar as mãos eram-lhe doloridos demais. E não era para menos, já que o pessoal do Ministério da Verdade trabalhou por mais de noventa horas durante cinco dias. Ao final das atividades todos receberam a merecida folga...
Estando livre de novas tarefas, pelo menos até a manhã do dia seguinte, Winston calculou que “podia passar seis horas no esconderijo e nove na própria cama”.
Escolheu uma rua das emporcalhadas para encaminhar-se à lojinha do Senhor Charrington. Caminhou prestando atenção à movimentação geral, sobretudo para certificar-se de que não havia nenhuma patrulha em ação.
Talvez pelo cansaço extremado e pelo excesso de atividades da “Semana do Ódio”, não considerou sinceramente que fosse enquadrado por agentes da repressão enquanto seguia para o refúgio. Em vez disso, seu pensamento voltava-se principalmente ao formigamento que sentia na perna devido às batidas de sua pasta conforme caminhava.

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Neste ponto é bom que se saiba que na pasta ia livro enviado por O’Brien e que, mesmo estando há seis dias em sua posse, sequer o abrira. Também é importante sabermos como o material chegou-lhe às mãos.
A “Semana do Ódio” já estava no sexto dia... O evento havia sido marcado por “discursos, gritaria, cantoria, bandeiras, cartazes, filmes, esculturas em cera, rufar de tambores e guinchar de clarins, reboar de pés em marcha, ronco das esteiras dos tanques, zumbido dos aviões no ar, troar dos canhões”. As atividades levaram os participantes ao clímax do ódio em relação à Eurásia, e de tal modo externavam sua ferocidade que parecia estarem prontos para “esquartejar com as unhas” os dois mil prisioneiros que seriam executados na forca no último dia.
Mas aconteceu que um anúncio oficial fez saber que o inimigo da Oceania era a Lestásia e não a Eurásia. Obviamente não se falou de alteração de fatos... Simplesmente o ódio extravasado passava a se direcionar “automaticamente”, como se o conflito “de sempre” tivesse sido com os “lestasiáticos”. Portanto, a guerra era contra a Lestásia enquanto os eurasianos eram aliados!
Evidentemente os trabalhadores do Ministério da Verdade tiveram de mobilizar esforços imediatos para efetivar as devidas alterações.
(...)
Winston, por exemplo, estava numa aglomeração em uma das praças centrais de Londres... Acompanhava as apresentações no meio de milhares de fanáticos e suas bandeiras avermelhadas iluminadas por refletores. Entre os mais empolgados estavam mil estudantes em seus uniformes do grupamento dos Espiões.
À toda gente falava um tipo de baixa estatura e magro que pertencia ao Partido Interno e que se destacava ainda pelos longos braços e tamanho avantajado da cabeça de poucos cabelos. O ódio que propagava desde o microfone adquiria um nível avassalador na medida em que seus gritos amplificados pela aparelhagem de som eram acompanhados da movimentação ameaçadora dos enormes braços. De resto, as palavras que faziam parte das ações do Partido e as denúncias eram as “mesmas de sempre”: “atrocidades, massacres, deportações, pilhagens, violações, tortura de prisioneiros, bombardeio de civis, propaganda mentirosa, agressões injustas, tratados desrespeitados”.
Apesar da mesmice, as reações dos manifestantes eram insanas. E isso porque todos se convenciam do conteúdo do discurso... Eventualmente a voz do tipo era sufocada pela reação furiosa do público.
Os jovens estudantes eram os que mais berravam quando um assistente entregou um papel ao orador, que o desenrolou e deu prosseguimento à sua falação furiosa sem alterar o tom de voz ou os gestos teatrais... O conteúdo continuou o mesmo, porém a partir de então anunciou que a guerra que a Oceania travava era com a Lestásia.
De repente as pessoas se voltaram para os anúncios das inúmeras faixas e cartazes que traziam mensagens de ódio à Eurásia. Logo se convenceram que a gente de Goldstein havia sabotado as festividades e espalhado o “material errado” por toda a praça. Primeiro percebeu-se o silêncio tomando conta da multidão, mas, assim que passaram a providenciar a destruição do material, a agitação voltou a tomar conta de todos.
A moçada que pertencia aos Espiões se destacou no ataque às faixas e cartazes... Moços e moças escalaram paredes, subiram nos telhados e agarraram-se às chaminés para arrancar e rasgar faixas e cartazes.
Depois do tumulto, e isso nem demorou muito, o baixinho do Partido Interno voltou a falar ao público e a gesticular as ameaças contra os “inimigos de sempre”: a Lestásia. Na sequência, a multidão retomou as manifestações de ódio...
Winston contemplava a tudo e se surpreendia com a facilidade da mudança do alvo. O orador passou de “um inimigo a outro” no meio de uma frase, e fez isso sem qualquer pausa ou “ofensa à sintaxe”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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