terça-feira, 14 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - mais a respeito da conversa sobre ter tido a oportunidade de guardar a prova da armação do regime contra Jones, Aaronson e Rutherford; possibilidades remotas de fomentar um movimento contrário ao sistema; opiniões alienadas de Júlia, uma “rebelde da cintura para baixo”; estratégias da garota para burlar a repressão e suportar a conversa ideológica de Winston; os que “engoliam” a ortodoxia do Partido mantinham saúde mental e sem sofrer traumas de consciência; encontro tête-à-tête com O’Brien no corredor do Departamento de Registro

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-educacao-servico.html antes de ler esta postagem:

A Winston pesava não ter certeza se outros tipos partilhavam suas recordações ou problematizações. Lamentava saber que no recorte sobre Jones, Aaronson e Rutherford tivera a “a prova real e concreta” anos mais tarde dos episódios.
Júlia ouvia suas lamentações, mas por fim perguntou o que havia adiantado ter passado pela experiência que poderia resultar em incriminações ao sistema... Ele respondeu que não adiantou em nada porque eliminou o papel na sequência, mas adiantou que se tivesse a mesma oportunidade novamente guardaria o documento.
A garota exclamou que não faria o mesmo... Garantiu que aceitava “correr riscos”, mas apenas pelas causas que lhe interessavam diretamente. Os “pedacinhos de papel” não se encaixavam em suas prioridades. Por fim perguntou-lhe o que ele poderia fazer se tivesse guardado o recorte.
Winston admitiu que a possibilidade de agir continuasse restrita, mas de qualquer modo teria em mãos uma prova contundente... Com ela talvez conseguisse lançar “algumas dúvidas aqui e ali” desde que tivesse a coragem de mostrá-la. Admitiu ainda que dificilmente teriam condições de imprimir alterações à realidade enquanto vivessem, mas a ideia de semear a desconfiança era tentadora. Até porque imaginava que grupos de resistência poderiam se formar e elaborar planos de ação que chegassem às gerações futuras.
Júlia o ouviu e mais uma vez discordou... Disse-lhe que não se interessava pelas próximas gerações, mas apenas neles mesmos e no que podiam fazer para satisfazer as próprias necessidades e desejos. Winston respondeu que ela só era rebelde “da cintura para baixo”. Ela achou graça e o envolveu com um afetuoso abraço.
(...)
Winston insistia em falar a respeito das articulações e doutrina do IngSoc, seus princípios (“o duplipensar, a mutabilidade do passado e a negação da realidade objetiva”, as palavras em “novilíngua”)... Mas Júlia se aborrecia, mostrava-se confusa e dizia que, além de não entender, jamais prestara “atenção a essas coisas”.
O que podia dizer era que considerava tudo aquilo um “lixo”. Exatamente por isso não via qualquer necessidade de se importar... Permanecia convicta de que precisava apenas saber quando devia vaiar ou aplaudir. Essa era a “ciência de que precisava”.
Não era por acaso que adormecia nos momentos em que o namorado iniciava uma falação a respeito desses temas. Para Winston, Júlia tinha uma facilidade tremenda de “aparentar ortodoxia, sem ter a menor noção do que fosse ortodoxia”. Isso o levava a concluir que as mensagens do Partido eram mais bem assimiladas por aqueles que, assim como a jovem, não as compreendiam. Essas pessoas acabavam aceitando “as mais flagrantes violações da realidade” já que, na medida em que não se interessavam pela análise dos fatos e contextos vivenciados, perdiam qualquer condição de perceber a gravidade dos delitos praticados pelo regime...
Uma vez que se mantinham alienadas não corriam riscos de sofrer traumas de consciência, como ocorria com Winston. Mantinham a saúde mental “engolindo” o que o IngSoc despejava durante os pronunciamentos transmitidos pelas teletelas...
Winston lamentava concluir que pessoas como Júlia não passavam mal com tudo o que “engoliam”. E ele sabia que o regime cuidava de produzir material que “não deixava resíduo; do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelo corpo de uma ave”.

(...)

Por aqueles dias ocorreu algo que Winston parecia esperar com ansiedade desmedida... Caminhava pelo corredor do Departamento de Registro, mais ou menos no mesmo local em que recebeu o “recado” de Júlia, quando ouviu passos firmes que pareciam segui-lo.
Não teve dúvida de que só podia se tratar de um tipo “mais encorpado que ele”. Ao ouvir uma tosse pigarreada teve a sensação de que o outro deseja falar-lhe, por isso parou e olhou para trás. Surpreendeu-se ao constatar que era O’Brien, então pensou que finalmente se encontrariam “face-a-face”... Porém, ao notar que seus batimentos cardíacos aceleraram, e que não conseguia emitir qualquer cumprimento, quis escapar o mais rápido possível.
De sua parte, O’Brien prosseguiu com sua passada e, ao se aproximar, colocou a mão em seu braço. Logo os dois passaram a caminhar juntos... O homem começou a falar e Winston notou o tom de voz “solene e cortês”, típico dos que pertenciam ao Partido Interno.
Em síntese, disse que pretendia falar-lhe há algum tempo, mas ainda não tivera oportunidade... Explicou que havia lido um de seus artigos no “Times”, que achou interessante e pôde perceber que ele tinha “um interesse erudito na ‘novilíngua’”.
Mais aliviado do choque recebido no primeiro impacto, Winston conseguiu responder que não se tratava exatamente de um erudito, que se tratava apenas de um amador e que não tivera nunca qualquer “interferência na construção do idioma”.
Esse diálogo tem prosseguimento... Conheceremos na próxima postagem.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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