Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-educacao-servico.html antes
de ler esta postagem:
A Winston pesava não ter certeza se outros tipos
partilhavam suas recordações ou problematizações. Lamentava saber que no
recorte sobre Jones, Aaronson e Rutherford tivera a “a prova real e concreta”
anos mais tarde dos episódios.
Júlia ouvia suas lamentações,
mas por fim perguntou o que havia adiantado ter passado pela experiência que poderia
resultar em incriminações ao sistema... Ele respondeu que não adiantou em nada
porque eliminou o papel na sequência, mas adiantou que se tivesse a mesma
oportunidade novamente guardaria o documento.
A garota exclamou que não faria o mesmo... Garantiu que aceitava “correr
riscos”, mas apenas pelas causas que lhe interessavam diretamente. Os
“pedacinhos de papel” não se encaixavam em suas prioridades. Por fim
perguntou-lhe o que ele poderia fazer se tivesse guardado o recorte.
Winston admitiu que a
possibilidade de agir continuasse restrita, mas de qualquer modo teria em mãos
uma prova contundente... Com ela talvez conseguisse lançar “algumas dúvidas
aqui e ali” desde que tivesse a coragem de mostrá-la. Admitiu ainda que dificilmente
teriam condições de imprimir alterações à realidade enquanto vivessem, mas a
ideia de semear a desconfiança era tentadora. Até porque imaginava que grupos
de resistência poderiam se formar e elaborar planos de ação que chegassem às
gerações futuras.
Júlia o ouviu e mais uma
vez discordou... Disse-lhe que não se interessava pelas próximas gerações, mas
apenas neles mesmos e no que podiam fazer para satisfazer as próprias
necessidades e desejos. Winston respondeu que ela só era rebelde “da cintura
para baixo”. Ela achou graça e o envolveu com um afetuoso abraço.
(...)
Winston insistia em falar a
respeito das articulações e doutrina do IngSoc, seus princípios (“o
duplipensar, a mutabilidade do passado e a negação da realidade objetiva”, as
palavras em “novilíngua”)... Mas Júlia se aborrecia, mostrava-se confusa e
dizia que, além de não entender, jamais prestara “atenção a essas coisas”.
O que podia dizer era que
considerava tudo aquilo um “lixo”. Exatamente por isso não via qualquer
necessidade de se importar... Permanecia convicta de que precisava apenas saber
quando devia vaiar ou aplaudir. Essa era a “ciência de que precisava”.
Não era por acaso que
adormecia nos momentos em que o namorado iniciava uma falação a respeito desses
temas. Para Winston, Júlia tinha uma facilidade tremenda de “aparentar
ortodoxia, sem ter a menor noção do que fosse ortodoxia”. Isso o levava a
concluir que as mensagens do Partido eram mais bem assimiladas por aqueles que,
assim como a jovem, não as compreendiam. Essas pessoas acabavam aceitando “as
mais flagrantes violações da realidade” já que, na medida em que não se
interessavam pela análise dos fatos e contextos vivenciados, perdiam qualquer
condição de perceber a gravidade dos delitos praticados pelo regime...
Uma vez que se mantinham alienadas não corriam riscos de sofrer traumas
de consciência, como ocorria com Winston. Mantinham a saúde mental “engolindo”
o que o IngSoc despejava durante os pronunciamentos transmitidos pelas
teletelas...
Winston lamentava concluir que pessoas como Júlia não passavam mal com
tudo o que “engoliam”. E ele sabia que o regime cuidava de produzir material
que “não deixava resíduo; do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser
digerido, pelo corpo de uma ave”.
(...)
Por aqueles dias ocorreu algo que Winston
parecia esperar com ansiedade desmedida... Caminhava pelo corredor do
Departamento de Registro, mais ou menos no mesmo local em que recebeu o
“recado” de Júlia, quando ouviu passos firmes que pareciam segui-lo.
Não teve dúvida de
que só podia se tratar de um tipo “mais encorpado que ele”. Ao ouvir uma tosse
pigarreada teve a sensação de que o outro deseja falar-lhe, por isso parou e
olhou para trás. Surpreendeu-se ao constatar que era O’Brien, então pensou que
finalmente se encontrariam “face-a-face”... Porém, ao notar que seus batimentos
cardíacos aceleraram, e que não conseguia emitir qualquer cumprimento, quis
escapar o mais rápido possível.
De sua parte, O’Brien prosseguiu com sua passada e, ao se aproximar,
colocou a mão em seu braço. Logo os dois passaram a caminhar juntos... O homem começou
a falar e Winston notou o tom de voz “solene e cortês”, típico dos que
pertenciam ao Partido Interno.
Em
síntese, disse que pretendia falar-lhe há algum tempo, mas ainda não tivera
oportunidade... Explicou que havia lido um de seus artigos no “Times”, que
achou interessante e pôde perceber que ele tinha “um interesse erudito na
‘novilíngua’”.
Mais aliviado do choque
recebido no primeiro impacto, Winston conseguiu responder que não se tratava
exatamente de um erudito, que se tratava apenas de um amador e que não tivera
nunca qualquer “interferência na construção do idioma”.
Esse
diálogo tem prosseguimento... Conheceremos na próxima postagem.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto