Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-segunda-parte-do.html?zx=5429f5026adf59d0 antes
de ler esta postagem:
Winston poderia continuar falando a respeito da
mãe... Júlia não estava disposta e também por isso a conversa não rendeu mais,
todavia surpreendeu-se ao notar que tinha várias lembranças dela.
Sabia que ela não se
destacava por qualquer distinção em relação ás demais, tampouco se podia dizer
que fosse inteligente... O que mais chamava a atenção nos gestos da mãe era
“uma espécie de nobreza, de pureza”, algo que se relacionava unicamente ao seu
modo de encarar a dureza do dia-a-dia.
O sofrimento e os desafios da existência tumultuada pela instabilidade e
perseguições políticas não abalavam os sentimentos da mãe. Todos os seus gestos
e esforços na luta pela sobrevivência dos filhos eram por ela calculados e
ainda que não resultassem em satisfatórios prosseguia firme no propósito de
amá-los. Ainda que não tivesse nada de material para oferecer-lhes, continuaria
dar-lhes o amor.
A imagem da mãe envolvendo
a pequena em seus braços após o menino Winston ter surrupiado o chocolate não
lhe saía da cabeça... Passados tantos anos ele podia entender que os gestos da
mulher eram naturais. Ela era impotente em todos os sentidos e bem sabia que
por mais que se esforçasse não conseguiria fazer a merenda ressurgir, não
evitaria a morte da filhinha e tampouco a própria. A única coisa que ela podia
fazer era apertar a menina contra o peito e o acalanto adviria como ação
natural.
(...)
Também a mulher do filme,
que tentava proteger o filho da avalanche de balaços, sabia que o escudo de seu
abraço era pouco mais que “folha de papel”. A mensagem que o Partido parecia
passar com aquela fita era a de que os sentimentos de afeto e os esforços
resultantes dos impulsos de preservação dos entes queridos não tinham qualquer
importância ou eficácia, já que as pessoas eram levadas a crer (e a perceber)
que não tinham qualquer “poder sobre o mundo material”.
Depois que as pessoas se
percebiam subjugadas pelo poder extremado do Partido, os sentimentos e os
esforços pouco importavam. Elas deixavam de se sentir sujeitos na medida em que
sua condição de indivíduo histórico desaparecia. Winston calculou que as
gerações anteriores não dedicaram importância a essa mudança porque não se
sentiam agentes de mudança da História e sequer se empenhavam em alterá-la
porque se moviam prioritariamente pelos vínculos de lealdade mantidos entre os
que lhes eram próximos. Tais vínculos eram sólidos e jamais colocados em
dúvida, assim as relações interpessoais tinham muito valor... Abraços,
lágrimas, palavras de incentivo ou de conforto e pequenos sinais que pareciam
sem importância eram muito valorizados.
(...)
De um momento para outro,
Winston pensou que os proles eram tipos que continuavam a viver como outrora,
pois devotavam lealdade aos seus sem se importarem com Partido, pátria ou
doutrina ideológica. Esse raciocínio levou-o a considerar que eles não podiam
ser vistos apenas como o grupo que concentrava em si o gérmen da revolta que
afrontaria o sistema e “regeneraria o mundo”. Aquela gente permanecia seres
humanos que não se enrijeceram internamente e por isso ainda manifestavam
emoções primitivas, algo que ele calculava ter de “reaprender por esforço
consciente”.
Lembrou-se da ocasião em
que estivera perambulando pela região de moradia dos proles durante a noite e
se deparara com a mão amputada logo após o ataque aéreo... Sua reação havia
sido a de chutá-la “como se fosse um talo de couve”. Balançou a cabeça e falou
como se estivesse pensando alto que “os proles são seres humanos” e que pessoas
como ele, Júlia e os demais do Partido não eram. A moça despertou e quis saber
por qual motivo.
Demorou um pouco e, em vez de responder diretamente, perguntou se a
amiga já havia pensado que o melhor que tinham a fazer era não mais se
encontrarem, pois certamente seriam flagrados. Júlia respondeu que sim, pensara
sobre isso, mas não abandonaria os encontros e isso era definitivo. Winston advertiu
que até o momento haviam contado com a sorte, mas aquilo poderia não durar
muito mais tempo. Lembrou-lhe que ainda era bem jovem e que podia prosseguir
numa existência “normal e inocente”. Afastando-se de tipos como ele, poderia
viver mais uns cinquenta anos.
Ela insistiu que já havia pensado em tudo e que ele podia contar com a
sua participação em tudo o que decidisse fazer. Depois garantiu que não era
preciso se preocupar porque ela sabia se virar muito bem. Ainda receoso,
Winston disse que talvez ficassem mais meio ano ou um ano inteiro sem serem
incomodados. Era algo que não podiam saber, mas certamente os separariam assim
que os descobrissem. Então não poderiam fazer nada um pelo outro e se tornariam
solitários em conformidade com os interesses do Partido.
Pessimista em relação ao destino de ambos,
lembrou que certamente passaria por inquéritos que o levariam a confessar tudo,
e isso resultaria no fuzilamento de Júlia. Mesmo se se recusasse a confessar o
seu fim seria o mesmo. De qualquer modo ele não tinha como retardar sua
execução. Indefesos, sequer saberiam se o parceiro já não estava morto.
Por
fim salientou que deviam permanecer fiéis um ao outro... Embora não fizesse
diferença, era importante que, em caso de captura, não se traíssem.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-julia-e-winston.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto