terça-feira, 21 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - reflexões sobre os gestos altivos da mãe e sobre o modo como o devotamento aos próximos era valorizado pelos antigos; a mensagem do Partido na fita sobre a pobre mãe querendo defender o filho das metralhadas; apartados da fidelidade à doutrina partidária e ao patriotismo, os proles continuavam a viver como humanos normais; seriam capturados mais cedo ou mais tarde, Winston estava pessimista e Júlia não pensava na hipótese de afastar-se do relacionamento


Winston poderia continuar falando a respeito da mãe... Júlia não estava disposta e também por isso a conversa não rendeu mais, todavia surpreendeu-se ao notar que tinha várias lembranças dela.
Sabia que ela não se destacava por qualquer distinção em relação ás demais, tampouco se podia dizer que fosse inteligente... O que mais chamava a atenção nos gestos da mãe era “uma espécie de nobreza, de pureza”, algo que se relacionava unicamente ao seu modo de encarar a dureza do dia-a-dia.
O sofrimento e os desafios da existência tumultuada pela instabilidade e perseguições políticas não abalavam os sentimentos da mãe. Todos os seus gestos e esforços na luta pela sobrevivência dos filhos eram por ela calculados e ainda que não resultassem em satisfatórios prosseguia firme no propósito de amá-los. Ainda que não tivesse nada de material para oferecer-lhes, continuaria dar-lhes o amor.
A imagem da mãe envolvendo a pequena em seus braços após o menino Winston ter surrupiado o chocolate não lhe saía da cabeça... Passados tantos anos ele podia entender que os gestos da mulher eram naturais. Ela era impotente em todos os sentidos e bem sabia que por mais que se esforçasse não conseguiria fazer a merenda ressurgir, não evitaria a morte da filhinha e tampouco a própria. A única coisa que ela podia fazer era apertar a menina contra o peito e o acalanto adviria como ação natural.
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Também a mulher do filme, que tentava proteger o filho da avalanche de balaços, sabia que o escudo de seu abraço era pouco mais que “folha de papel”. A mensagem que o Partido parecia passar com aquela fita era a de que os sentimentos de afeto e os esforços resultantes dos impulsos de preservação dos entes queridos não tinham qualquer importância ou eficácia, já que as pessoas eram levadas a crer (e a perceber) que não tinham qualquer “poder sobre o mundo material”.
Depois que as pessoas se percebiam subjugadas pelo poder extremado do Partido, os sentimentos e os esforços pouco importavam. Elas deixavam de se sentir sujeitos na medida em que sua condição de indivíduo histórico desaparecia. Winston calculou que as gerações anteriores não dedicaram importância a essa mudança porque não se sentiam agentes de mudança da História e sequer se empenhavam em alterá-la porque se moviam prioritariamente pelos vínculos de lealdade mantidos entre os que lhes eram próximos. Tais vínculos eram sólidos e jamais colocados em dúvida, assim as relações interpessoais tinham muito valor... Abraços, lágrimas, palavras de incentivo ou de conforto e pequenos sinais que pareciam sem importância eram muito valorizados.
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De um momento para outro, Winston pensou que os proles eram tipos que continuavam a viver como outrora, pois devotavam lealdade aos seus sem se importarem com Partido, pátria ou doutrina ideológica. Esse raciocínio levou-o a considerar que eles não podiam ser vistos apenas como o grupo que concentrava em si o gérmen da revolta que afrontaria o sistema e “regeneraria o mundo”. Aquela gente permanecia seres humanos que não se enrijeceram internamente e por isso ainda manifestavam emoções primitivas, algo que ele calculava ter de “reaprender por esforço consciente”.
Lembrou-se da ocasião em que estivera perambulando pela região de moradia dos proles durante a noite e se deparara com a mão amputada logo após o ataque aéreo... Sua reação havia sido a de chutá-la “como se fosse um talo de couve”. Balançou a cabeça e falou como se estivesse pensando alto que “os proles são seres humanos” e que pessoas como ele, Júlia e os demais do Partido não eram. A moça despertou e quis saber por qual motivo.
Demorou um pouco e, em vez de responder diretamente, perguntou se a amiga já havia pensado que o melhor que tinham a fazer era não mais se encontrarem, pois certamente seriam flagrados. Júlia respondeu que sim, pensara sobre isso, mas não abandonaria os encontros e isso era definitivo. Winston advertiu que até o momento haviam contado com a sorte, mas aquilo poderia não durar muito mais tempo. Lembrou-lhe que ainda era bem jovem e que podia prosseguir numa existência “normal e inocente”. Afastando-se de tipos como ele, poderia viver mais uns cinquenta anos.
Ela insistiu que já havia pensado em tudo e que ele podia contar com a sua participação em tudo o que decidisse fazer. Depois garantiu que não era preciso se preocupar porque ela sabia se virar muito bem. Ainda receoso, Winston disse que talvez ficassem mais meio ano ou um ano inteiro sem serem incomodados. Era algo que não podiam saber, mas certamente os separariam assim que os descobrissem. Então não poderiam fazer nada um pelo outro e se tornariam solitários em conformidade com os interesses do Partido.
Pessimista em relação ao destino de ambos, lembrou que certamente passaria por inquéritos que o levariam a confessar tudo, e isso resultaria no fuzilamento de Júlia. Mesmo se se recusasse a confessar o seu fim seria o mesmo. De qualquer modo ele não tinha como retardar sua execução. Indefesos, sequer saberiam se o parceiro já não estava morto.
Por fim salientou que deviam permanecer fiéis um ao outro... Embora não fizesse diferença, era importante que, em caso de captura, não se traíssem.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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