Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-perfume-identico.html?zx=541c0f66207db3de antes
de ler esta postagem:
Precisamos
retomar a questão do horror desmedido de Winston pelos ratos...
O caso é que assim que Júlia anunciou a presença do roedor no quarto,
ele teve uma sensação das mais desagradáveis...
E tudo porque associava o bicho a um pesadelo que o atormentava com
certa frequência.
O pesadelo não
variava... Normalmente ele se via “diante duma muralha de trevas, e do outro
lado da muralha havia algo insuportável, algo demasiado horrível para se
encarar”. Mas ele não sabia o que havia atrás do paredão de treva, e seu drama
se tornava insuportável porque tinha a convicção de que apenas “um esforço
fatal”, arrancando “um pedaço do próprio cérebro”, poderia revelar o mistério.
O problema é que sempre despertava do pesadelo sem descobrir do que se
tratava...
(...)
No momento em que Júlia o acolhia em seus braços para tranquilizá-lo da
crise de pânico, ele parecia entender que o “demasiado insuportável e horrível”
de seu pesadelo relacionava-se exatamente ao que ela dizia a respeito dos
ataques das ratazanas às crianças e muito provavelmente a pessoas como ele.
Depois
de algum tempo pediu desculpa à namorada... Disse que simplesmente não gostava
de ratos. Júlia respondeu que ele não devia se preocupar, pois não permitiria
que os roedores o incomodassem no quarto. Ela garantiu que calafetaria o buraco
com retalhos de tecido antes mesmo de saírem, e que o taparia com um reboco quando
voltassem.
Winston sentiu-se
envergonhado com a situação, mas aos poucos eliminou o incidente de sua
consciência. Sentou-se na cama e observou Júlia vestir-se para fazer o café.
Não
demorou e um delicioso aroma invadiu o quarto... E era algo tão forte e
“inebriante” que tiveram de fechar a janela para evitar especulações da
vizinhança... Melhor do que isso foi saborear a bebida adoçada com “açúcar
verdadeiro” e de sabor quase esquecido por Winston.
(...)
A garota andou pelo
quarto enquanto mastigava um pedaço de pão com geleia... Não deu qualquer
atenção à estante de livros, em compensação deu palpites sobre como “consertar
a mesa dobradiça”, atirou-se sobre a poltrona para experimentar o conforto e
fez chacotas a respeito do relógio. Na sequência, pegou o peso de vidro o
colocou-o contra a luz para examiná-lo.
Winston pediu-lhe o
objeto sem esconder o encanto que sentia por ele e seu “aspecto macio, de água de
chuva, de vidro secular”. Júlia quis saber do que se tratava e ele respondeu
que achava que provavelmente aquilo “não servia para nada”, mas era exatamente
por isso que gostava dele... O via como a um “pedacinho de história que se
esqueceram de alterar”; “uma mensagem de cem anos atrás”. Emendou que lhes
faltava a capacidade de interpretá-la.
Depois Júlia apontou para a gravura e perguntou se também ela contava
cem anos... Ele respondeu que talvez tivesse uns duzentos anos, e não teriam
como saber já que ninguém se importava com a idade das coisas. A garota
adiantou-se para conferir mais de perto e notou que no rodapé abaixo da moldura
estava o buraco onde o rato meteu o focinho. Depois de dar um pontapé no local,
perguntou a respeito do lugar que estava representado na gravura... Achou que
já tivesse visto a “casa”.
Winston a corrigiu, garantindo que se tratava de uma igreja... Explicou
que se chamava Igreja de S. Clemente dos Dinamarqueses e pôs-se a declamar a
cantiga que havia aprendido com o Senhor Charrington: “Laranjas e limões, dizem
os sinos de S. Clemente!” Espantou-se ao notar que Júlia sabia continuar: “Me
deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho; Quando me pagarás? dizem os
sinos de Old Bailey”. Ela cantarolou o trecho, mas interrompeu dizendo que não
sabia a continuação... Ao menos conhecia os versos finais: “Aí vem uma luz para
te levar para a cama; Aí vem um machado para te cortar a cabeça!”
Espantoso... Quem havia ensinado a canção a ela?
Ele quis saber e perguntou ao mesmo tempo em que cogitava haver outros versos
mais e que devia insistir para que o Senhor Charrington tentasse se lembrar.
Júlia respondeu que ouvia o avô cantar quando ainda era uma menina... O velho
acabou “vaporizado”, ou simplesmente desapareceu, quando ela contava apenas
oito anos.
(...)
Essa conversa
rendeu... Ela se mostrou intrigada com a palavra “limão”, o que será? Já havia
visto laranja, “uma espécie de fruta redonda, amarela, com casca grossa”,
acrescentou.
Winston disse que se lembrava do limão, fruta bem comum até os anos 1950
e muito azeda... Júlia mudou o assunto ao falar sobre a possibilidade de o
quadro estar infestado de bichos e que no próximo encontro o limparia. Depois
disse que já era hora de se retirarem, tinha de tirar a maquiagem do rosto e
ajudá-lo a se limpar.
Ele
permaneceu na cama por mais um breve tempo... Contemplou o quarto que já estava
bem mais escuro. Mais uma vez concentrou-se no peso de vidro e pensou que seu
interesse por ele não tinha nada a ver com o coral que o enfeitava. Era a parte
interna da peça que o atraía. Havia profundidade, mas via-se que “era quase
transparente como o ar” e a parte abaulada fazia a vez de “abóbada celeste”.
Então é como se o interior do objeto representasse um “mundo à parte, com
atmosfera própria”.
Olhá-lo
com atenção era exercício de intromissão em seu “mundo à parte”. O pensamento
de Winston o levava a imaginar que ele já se encontrava inserido nele “junto
com a cama de mogno e a mesa dobradiça, o relógio, a gravura em aço e o próprio
peso de papéis”. Era como se o peso representasse o quarto “e o coral era a
vida de Júlia e a dele, fixados para a eternidade no coração do cristal”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-o-desaparecimento.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto