segunda-feira, 6 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell – o pesadelo da “muralha de trevas” e sua relação com a fobia aos ratos; Júlia, uma solução para a toca do rato e um delicioso café; a gravura da moldura remete à cantiga ensinada pelo Senhor Charrington, que a garota conhecia desde a infância; o peso de vidro, um “mundo à parte” que podia representar a realidade e condição do casal


Precisamos retomar a questão do horror desmedido de Winston pelos ratos...
O caso é que assim que Júlia anunciou a presença do roedor no quarto, ele teve uma sensação das mais desagradáveis...  E tudo porque associava o bicho a um pesadelo que o atormentava com certa frequência.
O pesadelo não variava... Normalmente ele se via “diante duma muralha de trevas, e do outro lado da muralha havia algo insuportável, algo demasiado horrível para se encarar”. Mas ele não sabia o que havia atrás do paredão de treva, e seu drama se tornava insuportável porque tinha a convicção de que apenas “um esforço fatal”, arrancando “um pedaço do próprio cérebro”, poderia revelar o mistério. O problema é que sempre despertava do pesadelo sem descobrir do que se tratava...
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No momento em que Júlia o acolhia em seus braços para tranquilizá-lo da crise de pânico, ele parecia entender que o “demasiado insuportável e horrível” de seu pesadelo relacionava-se exatamente ao que ela dizia a respeito dos ataques das ratazanas às crianças e muito provavelmente a pessoas como ele.
Depois de algum tempo pediu desculpa à namorada... Disse que simplesmente não gostava de ratos. Júlia respondeu que ele não devia se preocupar, pois não permitiria que os roedores o incomodassem no quarto. Ela garantiu que calafetaria o buraco com retalhos de tecido antes mesmo de saírem, e que o taparia com um reboco quando voltassem.
Winston sentiu-se envergonhado com a situação, mas aos poucos eliminou o incidente de sua consciência. Sentou-se na cama e observou Júlia vestir-se para fazer o café.
Não demorou e um delicioso aroma invadiu o quarto... E era algo tão forte e “inebriante” que tiveram de fechar a janela para evitar especulações da vizinhança... Melhor do que isso foi saborear a bebida adoçada com “açúcar verdadeiro” e de sabor quase esquecido por Winston.
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A garota andou pelo quarto enquanto mastigava um pedaço de pão com geleia... Não deu qualquer atenção à estante de livros, em compensação deu palpites sobre como “consertar a mesa dobradiça”, atirou-se sobre a poltrona para experimentar o conforto e fez chacotas a respeito do relógio. Na sequência, pegou o peso de vidro o colocou-o contra a luz para examiná-lo.
Winston pediu-lhe o objeto sem esconder o encanto que sentia por ele e seu “aspecto macio, de água de chuva, de vidro secular”. Júlia quis saber do que se tratava e ele respondeu que achava que provavelmente aquilo “não servia para nada”, mas era exatamente por isso que gostava dele... O via como a um “pedacinho de história que se esqueceram de alterar”; “uma mensagem de cem anos atrás”. Emendou que lhes faltava a capacidade de interpretá-la.
Depois Júlia apontou para a gravura e perguntou se também ela contava cem anos... Ele respondeu que talvez tivesse uns duzentos anos, e não teriam como saber já que ninguém se importava com a idade das coisas. A garota adiantou-se para conferir mais de perto e notou que no rodapé abaixo da moldura estava o buraco onde o rato meteu o focinho. Depois de dar um pontapé no local, perguntou a respeito do lugar que estava representado na gravura... Achou que já tivesse visto a “casa”.
Winston a corrigiu, garantindo que se tratava de uma igreja... Explicou que se chamava Igreja de S. Clemente dos Dinamarqueses e pôs-se a declamar a cantiga que havia aprendido com o Senhor Charrington: “Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente!” Espantou-se ao notar que Júlia sabia continuar: “Me deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho; Quando me pagarás? dizem os sinos de Old Bailey”. Ela cantarolou o trecho, mas interrompeu dizendo que não sabia a continuação... Ao menos conhecia os versos finais: “Aí vem uma luz para te levar para a cama; Aí vem um machado para te cortar a cabeça!”
Espantoso... Quem havia ensinado a canção a ela? Ele quis saber e perguntou ao mesmo tempo em que cogitava haver outros versos mais e que devia insistir para que o Senhor Charrington tentasse se lembrar. Júlia respondeu que ouvia o avô cantar quando ainda era uma menina... O velho acabou “vaporizado”, ou simplesmente desapareceu, quando ela contava apenas oito anos.
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Essa conversa rendeu... Ela se mostrou intrigada com a palavra “limão”, o que será? Já havia visto laranja, “uma espécie de fruta redonda, amarela, com casca grossa”, acrescentou.
Winston disse que se lembrava do limão, fruta bem comum até os anos 1950 e muito azeda... Júlia mudou o assunto ao falar sobre a possibilidade de o quadro estar infestado de bichos e que no próximo encontro o limparia. Depois disse que já era hora de se retirarem, tinha de tirar a maquiagem do rosto e ajudá-lo a se limpar.
Ele permaneceu na cama por mais um breve tempo... Contemplou o quarto que já estava bem mais escuro. Mais uma vez concentrou-se no peso de vidro e pensou que seu interesse por ele não tinha nada a ver com o coral que o enfeitava. Era a parte interna da peça que o atraía. Havia profundidade, mas via-se que “era quase transparente como o ar” e a parte abaulada fazia a vez de “abóbada celeste”. Então é como se o interior do objeto representasse um “mundo à parte, com atmosfera própria”.
Olhá-lo com atenção era exercício de intromissão em seu “mundo à parte”. O pensamento de Winston o levava a imaginar que ele já se encontrava inserido nele “junto com a cama de mogno e a mesa dobradiça, o relógio, a gravura em aço e o próprio peso de papéis”. Era como se o peso representasse o quarto “e o coral era a vida de Júlia e a dele, fixados para a eternidade no coração do cristal”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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