quinta-feira, 2 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell – receptividade de Charrington ao inquilino; cantoria da mulher a pendurar peças no varal e outros sons da vida exterior; sobre a produção das composições musicais destinadas aos proles; o silêncio do quarto desprovido de teletela; Winston se vê muito mais interessado em Júlia, mas a proximidade da “semana do ódio” impossibilitava novo encontro íntimo; clareira do bosque desmarcada e frustração; desejo de experimentar a convivência dos “casais normais”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-ao-mesmo-tempo.html antes de ler esta postagem:

Para o Senhor Charrington a proposta de Winston sobre alugar o quarto chegou em boa hora, já que compensaria as perdas com a queda da venda dos artigos da loja de antiguidades.
O velho não manifestou qualquer espanto ou senão ao saber que o rapaz pretendia receber uma garota no aposento. Quando conversaram a respeito, “falou de generalidades” sem qualquer relação com as finalidades do inquilino. Comentou sobre a importância de se poder contar com um ambiente como aquele quando se pretendia privacidade... Manifestou entender que “é cortesia comum se calarem os que dele souberem”. E como que a antecipar resposta a uma possível pergunta, disse que havia duas entradas para a casa, e que uma delas era pelo quintal e dava acesso ao beco.
(...)
Winston ouviu uma cantoria e se aproximou da janela... Usou a cortina para se esconder e assim pôde avistar o céu ao entardecer de um dia comum do mês de junho, em que, apesar do adiantado da hora, trazia lampejos do sol.
Uma senhora das bem grandes lidava com roupas no varal... Seus braços eram fortes e avermelhados, ela usava um avental ordinário e cantava animadamente enquanto estendia panos certamente utilizados como fraudas. Winston se dispôs a observar seus movimentos... Pegava os panos numa grande bacia e colocava prendedores na boca, só quando se livrava deles no varal é que voltava a cantar:

                   “Foi apenas uma fantasia desesperada; Que passou como um dia de abril; Mas um olhar, uma palavra, e os sonhos provocados; Roubaram o meu coração gentil!"

Ele conhecia a música... Já fazia algumas semanas que podia ser ouvida em várias partes da cidade. Ele sabia que se tratava de uma composição elaborada por um setor do Departamento de Música especificamente para os proles... Não havia qualquer “intervenção humana” na produção da letra ou dos arranjos musicais, tudo era feito “num instrumento chamado versificador”.
Apesar da mediocridade da composição, Winston achou que a interpretação da mulher era satisfatória, “quase agradável”, e isso porque ela colocava algum sentimento na cantoria. Por isso permaneceu por alguns instantes a ouvi-la e a vê-la a se movimentar de um lado para outro... Podia ouvir também vozes de crianças em suas brincadeiras na rua e o barulho dos automóveis.
Pensou sobre esses sons externos ao mesmo tempo em que avaliava que o quarto era bem silencioso, e que isso se devia ao fato de não haver ali nenhuma teletela instalada.
(...)
Depois o que lhe veio à cabeça foi a consciência de que estavam cometendo uma loucura das mais desbaratadas... Não havia como não serem descobertos em poucos dias. O caso é que a ideia de terem um cômodo de casa para os encontros às escondidas estremeceu o casal. O fato de poderem se deslocar até ele e desfrutarem de privacidade tornou-se tentador demais.
Aconteceu que depois de se encontrarem na torre da igreja não tiveram qualquer outra oportunidade. O problema é que a jornada de trabalho de ambos aumentou consideravelmente por causa dos muitos preparativos da “Semana do Ódio” que ocorreria dentro de um mês.
Chegaram a combinar encontro no bosque, pois a folga de ambos coincidiu, mas na véspera, ao passarem um pelo outro no meio da movimentação de transeuntes, Júlia antecipou que não poderia ir.
Winston notou que ela estava pálida, então quis saber por que tinham de cancelar. Ela explicou que devido ao “motivo comum”, que “desta vez começou cedo” não poderiam se encontrar. Em seu íntimo, o rapaz sentiu certa agitação, pois parecia não admitir a possibilidade de não ficarem juntos.
Como se vê, seu sentimento havia mudado muito desde que ela lhe havia passado o “recado” no corredor do Departamento de Registro. De início, o contato mais próximo não provocou nele significativa atração física e sensual, todavia a situação havia mudado e ele passou a sentir falta da jovem, de sua boca e maciez da pele e cabelos...
Acontece que Winston entendia que necessitava de Júlia e que tinha o direito de permanecer com ela. Desse modo, assim que ouviu que não se encontrariam na clareira do bosque, sentiu que “estava sendo lesado”.
(...)
Na calçada mesma em que ela antecipara que não poderiam se encontrar, ocorreu de se aproximarem porque o local tornou-se ainda mais apinhado de transeuntes, então os dois se deram as mãos.
Na sequência, Júlia tocou-lhe as pontas dos dedos, e ele pareceu entender que, mais do que desejo, ela estava carente de afeto, e que isso devia ser normal entre casais que convivem a mais tempo... Por isso, em vez de amargura, passou a experimentar uma sensação de ternura, algo “como nunca sentira antes”.
Naquele breve momento a consideração e o desejo de Winston por Júlia passaram por uma reviravolta... Ele gostaria com sinceridade que pudessem viver como:

                   “um casal com dez anos de existência em comum. (Winston) desejou passear com ela pelas ruas, como estavam fazendo naquele instante, mas abertamente, sem medo, falando de frivolidades e comprando pequenas bobagens para o lar. Desejou, acima de tudo, que tivessem um lugar onde ficar a sós, sem sentir a obrigação de fazer o amor, cada vez que se encontravam”.

No dia seguinte, ao refletir sobre este episódio na calçada, Winston pensou seriamente sobre a possibilidade de contatar o Senhor Charrington para propor-lhe alugar o quarto sobre a loja de antiguidades.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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