Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-ao-mesmo-tempo.html antes
de ler esta postagem:
Para o Senhor Charrington a proposta de Winston
sobre alugar o quarto chegou em boa hora, já que compensaria as perdas com a
queda da venda dos artigos da loja de antiguidades.
O velho não
manifestou qualquer espanto ou senão ao saber que o rapaz pretendia receber uma
garota no aposento. Quando conversaram a respeito, “falou de generalidades” sem
qualquer relação com as finalidades do inquilino. Comentou sobre a importância
de se poder contar com um ambiente como aquele quando se pretendia
privacidade... Manifestou entender que “é cortesia comum se calarem os que dele
souberem”. E como que a antecipar resposta a uma possível pergunta, disse que
havia duas entradas para a casa, e que uma delas era pelo quintal e dava acesso
ao beco.
(...)
Winston ouviu uma cantoria e se aproximou da janela... Usou a cortina
para se esconder e assim pôde avistar o céu ao entardecer de um dia comum do
mês de junho, em que, apesar do adiantado da hora, trazia lampejos do sol.
Uma
senhora das bem grandes lidava com roupas no varal... Seus braços eram fortes e
avermelhados, ela usava um avental ordinário e cantava animadamente enquanto
estendia panos certamente utilizados como fraudas. Winston se dispôs a observar
seus movimentos... Pegava os panos numa grande bacia e colocava prendedores na
boca, só quando se livrava deles no varal é que voltava a cantar:
“Foi apenas uma fantasia
desesperada; Que passou como um dia de abril; Mas um olhar, uma palavra, e os
sonhos provocados; Roubaram o meu coração gentil!"
Ele
conhecia a música... Já fazia algumas semanas que podia ser ouvida em várias
partes da cidade. Ele sabia que se tratava de uma composição elaborada por um
setor do Departamento de Música especificamente para os proles... Não havia
qualquer “intervenção humana” na produção da letra ou dos arranjos musicais, tudo
era feito “num instrumento chamado versificador”.
Apesar da
mediocridade da composição, Winston achou que a interpretação da mulher era
satisfatória, “quase agradável”, e isso porque ela colocava algum sentimento na
cantoria. Por isso permaneceu por alguns instantes a ouvi-la e a vê-la a se
movimentar de um lado para outro... Podia ouvir também vozes de crianças em
suas brincadeiras na rua e o barulho dos automóveis.
Pensou sobre esses
sons externos ao mesmo tempo em que avaliava que o quarto era bem silencioso, e
que isso se devia ao fato de não haver ali nenhuma teletela instalada.
Depois o que lhe veio à cabeça foi a consciência de que estavam
cometendo uma loucura das mais desbaratadas... Não havia como não serem
descobertos em poucos dias. O caso é que a ideia de terem um cômodo de casa
para os encontros às escondidas estremeceu o casal. O fato de poderem se
deslocar até ele e desfrutarem de privacidade tornou-se tentador demais.
Aconteceu que depois de se encontrarem na torre da igreja não tiveram qualquer
outra oportunidade. O problema é que a jornada de trabalho de ambos aumentou
consideravelmente por causa dos muitos preparativos da “Semana do Ódio” que
ocorreria dentro de um mês.
Chegaram a combinar encontro no bosque, pois a
folga de ambos coincidiu, mas na véspera, ao passarem um pelo outro no meio da
movimentação de transeuntes, Júlia antecipou que não poderia ir.
Winston notou que ela
estava pálida, então quis saber por que tinham de cancelar. Ela explicou que
devido ao “motivo comum”, que “desta vez começou cedo” não poderiam se
encontrar. Em seu íntimo, o rapaz sentiu certa agitação, pois parecia não
admitir a possibilidade de não ficarem juntos.
Como se vê, seu sentimento havia mudado muito desde que ela lhe havia
passado o “recado” no corredor do Departamento de Registro. De início, o
contato mais próximo não provocou nele significativa atração física e sensual,
todavia a situação havia mudado e ele passou a sentir falta da jovem, de sua
boca e maciez da pele e cabelos...
Acontece
que Winston entendia que necessitava de Júlia e que tinha o direito de
permanecer com ela. Desse modo, assim que ouviu que não se encontrariam na
clareira do bosque, sentiu que “estava sendo lesado”.
(...)
Na calçada mesma em
que ela antecipara que não poderiam se encontrar, ocorreu de se aproximarem
porque o local tornou-se ainda mais apinhado de transeuntes, então os dois se
deram as mãos.
Na
sequência, Júlia tocou-lhe as pontas dos dedos, e ele pareceu entender que,
mais do que desejo, ela estava carente de afeto, e que isso devia ser normal
entre casais que convivem a mais tempo... Por isso, em vez de amargura, passou
a experimentar uma sensação de ternura, algo “como nunca sentira antes”.
Naquele breve momento
a consideração e o desejo de Winston por Júlia passaram por uma reviravolta...
Ele gostaria com sinceridade que pudessem viver como:
“um casal com dez anos de
existência em comum. (Winston) desejou passear com ela pelas ruas, como estavam
fazendo naquele instante, mas abertamente, sem medo, falando de frivolidades e
comprando pequenas bobagens para o lar. Desejou, acima de tudo, que tivessem um
lugar onde ficar a sós, sem sentir a obrigação de fazer o amor, cada vez que se
encontravam”.
No
dia seguinte, ao refletir sobre este episódio na calçada, Winston pensou
seriamente sobre a possibilidade de contatar o Senhor Charrington para
propor-lhe alugar o quarto sobre a loja de antiguidades.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto