sexta-feira, 10 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell – bombas-foguete sobre a cidade às vésperas dos festejos da “semana do ódio”; atrocidades e manifestações patrióticas e de ódio aos inimigos do regime; o quarto sobre a loja de antiguidades, uma “redoma do passado”, um “porto seguro”; o velho Charrington, sua paixão pelos artigos antigos e canções do passado


Podia até ser coincidência... Os proles, que em geral não se importavam com os assuntos relacionados à guerra, passaram a manifestar reações patrióticas e assimilaram a “Canção de Ódio”, que fazia parte da campanha do Partido para a “Semana do Ódio”. Por outro lado, nunca havia caído tanta bomba-foguete como naqueles dias, vitimando uma quantidade de pessoas jamais vista.
Uma das bombas atingiu um cinema em Stepney... Ali a quantidade de mortes chegou a centenas, e a população local manifestou-se indignada por ocasião das cerimônias fúnebres... O evento teve longas horas de duração e mais se parecia com um grande comício do IngSoc.
Houve o caso da bomba que caiu sobre um terreno que era usado como parque para a recreação das crianças... O resultado foi que dezenas delas se tornaram “picadinho” e a população reagiu com muita indignação e protestos acalorados em que queimavam reproduções de Goldstein e rasgavam cartazes do guerreiro eurasiano que também eram atirados em fogueiras.
Na confusão, estabelecimentos comerciais foram saqueados e espalhou-se o boato de que as bombas-foguete que caíam sobre a cidade estavam sendo teleguiadas por agentes estrangeiros. Isso provocou uma onda de ódio sem precedentes e a turba avançou contra a casa de um velho casal de ascendência supostamente estrangeira... Os revoltosos atearam fogo e os idosos morreram asfixiados.
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Quando Winston e Júlia conseguiam se encontrar no quarto que haviam alugado, descansavam o mais que podiam na cama junto à janela... Por causa da intensidade do calor daqueles dias, os dois permaneciam nus sem se importarem com a precariedade da limpeza do local... De fato, durante o mês de junho tiveram sete encontros naquele local.
Se o rato não mais aparecia, o colchão continuava repleto de percevejos. Mas eles pouco se importavam, pois entendiam que o cômodo era o que de melhor podiam ter conseguido. Costumavam levar pimenta moída que obtinham no “mercado clandestino” e a polvilhavam sobre a cama para obter algum sossego... Mas era só o tempo de se entregarem um ao outro e tirarem um cochilo para voltarem a sentir a comichão provocada pelos insetos.
A autoestima de Winston estava em alta... Diminuiu consideravelmente o consumo de gin e ganhou peso... Sentiu que a variz não mais incomodava e que deixara de tossir durante as madrugadas. O fato é que o relacionamento com a jovem fez muito bem para ele, e só pelo fato de possuírem o refúgio já não se apoquentava por ficarem juntos “por apenas algumas horas”. Deixou de se aborrecer com o cotidiano e até conseguiu não se importar mais com as teletelas e suas programações ridículas.
Sim. Apesar do constante perigo que corriam, o quarto era algo extraordinário para eles. Winston sentia-se muito bem apenas por saber que o cômodo permanecia inviolável e a espera deles unicamente. Entendia que local era como que “uma redoma do passado, onde sobreviviam animais extintos”.
(...)
Na opinião de Winston, também o Senhor Charrington “era outro animal extinto”. Normalmente permanecia por alguns minutos a conversar com ele antes de encaminhar-se para o quarto... Assim ficou sabendo que quase nunca ele saía à rua e, além disso, parecia nem ter clientes interessados na velharia de sua loja. Sua existência era algo “fantasmal” e limitada à loja escura e a uma pequena cozinha na qual mantinha um velho gramofone com sua trompa assombrosa.
O Senhor Charrington dava a entender que gostava de conversar enquanto caminhava entre os objetos da loja. Em vez de comerciante, o seu tipo (“nariz comprido, óculos espessos, e os ombros arcados metidos num paletó de veludo”) lembrava o de um colecionador apaixonado por todos os objetos. Falava sobre eles na intenção de compartilhar sua admiração, sem dar a entender que estavam à venda.
Até os pequenos e aparentemente insignificantes artigos mereciam a atenção do velho Charrington. Seu modo de ser encantava Winston, que se impressionava com sua sapiência ao falar de “uma tampa de porcelana para garrafa, um pedaço pintado de caixa de rapé, (ou de) um medalhão de pechisbeque contendo um anel de cabelo de alguma criança morta” com o mesmo entusiasmo com que falava a respeito dos maiores objetos.
A conversa com o dono da loja de antiguidades sempre fluía agradavelmente. Às vezes ele falava a respeito de uma ou outra canção das antigas apenas porque imaginava que Winston gostaria de ouvi-las... Lembrou-se de uma sobre “vinte e quatro gralhas, outra a respeito duma vaca de chifre partido, e ainda outra sobre a morte do pobre pintarroxo”. Apesar de seu esforço de memória, conseguia emendar apenas um ou outro verso.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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