Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-divagacoes-de.html?zx=49b89a50c256dae4 antes
de ler esta postagem:
Evidentemente não se pode dizer que Júlia fosse
completamente avessa a toda doutrina do Partido... Como vimos, para ela o
predomínio do IngSoc sempre ocorreu e permaneceria indefinidamente. O
aprendizado que teve na escola foi marcado pela transmissão de informações que
enalteciam o regime e suas conquistas nos campos político, social, cultural,
científico e tecnológico. Não era por acaso que acreditava que o avião havia
sido inventado pelo Partido.
Winston disse-lhe que havia
frequentado a escola básica nos anos anteriores a 1960 e por aquele tempo havia
aprendido que o Partido havia “inventado o helicóptero”, esclareceu que durante
as aulas não se falava da tecnologia dominada pelo regime em relação à sua
capacidade de fabricar aviões... Isso o levou a concluir que, conforme o tempo
passava, o pessoal encarregado da educação dos jovens determinava mudanças no
currículo para satisfazer necessidades ideológicas de momento. Assim foi com a
geração de Júlia, doze anos mais jovem do que a sua, e certamente ocorria com
as mais novas, que seriam bombardeadas com informações sobre outras impressionantes
conquistas do regime.
Ele explicou à moça que o avião já existia bem antes da própria
Revolução que levou o IngSoc ao poder extremado... Mas ela deu de ombros, mostrando
que não via qualquer importância em se saber qual a origem da máquina ou quem a
inventou. Sua reação causou estranhamento ao Winston, que ficou ainda mais
pasmado ao ouvi-la dizer que não tinha conhecimento da guerra que a Oceania
travara com a Lestásia quatro anos antes, época em que esteve em paz com a Eurásia.
Júlia simplesmente parecia
não ter notado que os canais de comunicação a partir das teletelas alteraram o
curso dos acontecimentos e, com isso, o inimigo do país. Questionada a
respeito, respondeu que pensava que sempre estiveram em guerra contra a
Eurásia.
(...)
Winston assustou-se com as
palavras da namorada porque elas eram uma mostra da eficácia do trabalho
realizado pelo Ministério da Verdade... É claro que os aviões tinham sido
inventados bem antes do nascimento dela, e seu aprendizado escolar se dera
quando ela era ainda uma criança... Mas o que dizer a respeito da “reviravolta
da guerra”, ocorrida há apenas quatro anos, “quando já era adulta”?
Inconformado, falou-lhe a
respeito e apresentou-lhe alguns argumentos até que ela conseguiu lembrar-se um
pouco a respeito dos entreveros bélicos da Oceania com a Lestásia. Apesar
disso, também não viu grande importância no detalhe e, sem muita paciência,
quis saber se aquilo tinha mesmo alguma relevância. Para ela, a persistência
dos conflitos é que era errado. O que podiam fazer se os noticiários eram
sempre mentirosos?
(...)
Houve ocasiões em que
Winston falou-lhe a respeito de seu trabalho no Departamento de Registro e as
falsificações que tinha de processar. Esperava que a garota se indignasse com
as manobras do Partido para estabelecer a “verdade única e oficial”, mas nem o
fato de saber que “transformavam mentiras em verdades” a horrorizou.
Ele falou também a respeito
de Jones, Aaronson e Rutherford... Contou-lhe a respeito do recorte que lhe
chegara às mãos e que comprovava a fraude contra eles. Todavia também isso não
a sensibilizou... A rigor, ela não entendeu o caso e perguntou se os tipos eram
seus amigos. Winston explicou que os conhecia apenas de vista, pois eram mais
velhos do que ele e pertenciam ao Partido Interno... A militância deles datava
de antes da Revolução, portanto eram tipos que “pertenciam ao passado”.
Júlia quis entender por que ele se preocupava com o que havia se
sucedido aos três... Argumentou que pessoas eram executadas pelo regime
ininterruptamente. Ele disse que não era apenas o caso de terem sido
assassinados, já que o papel provava que o Partido aboliu o que havia de fato
ocorrido. A manipulação modificou o passado... Talvez se pudesse dizer que o
objetivo fosse mesmo o de eliminar o passado, que só podia ser encontrado em
certos objetos da loja de Charrington, sem quaisquer referências textuais a
eles relacionadas, como era o caso do peso de vidro.
Ainda tentando explicar a situação, Winston disse à Júlia que as pessoas
pouco ou nada sabiam a respeito da Revolução ou do período anterior a ela
porque os registros haviam sido destruídos ou falsificados... Os livros foram
reescritos, “os quadros repintados, toda estátua, rua e edifício rebatizado,
toda data alterada”.
Ele quis mostrar que a situação era das mais
dramáticas e acrescentou que diariamente, “minuto a minuto”, se processavam
alterações. A História não mais existia, pois o Partido instituíra uma espécie
de “presente sem-fim” que evidenciava que “o regime sempre tem razão”. Seu
drama concentrava-se no fato de saber que o passado vinha sendo falsificado,
mas, apesar de trabalhar na falsificação, e de ser um dos autores das
retificações, ele mesmo não tinha condições de provar as fraudes.
Amargurado,
explicou à Júlia que assim que terminava o serviço não sobrava qualquer
prova... Apenas em sua consciência habitava certeza a respeito da mentira que
ajudara a construir.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-mais-respeito-da.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto