terça-feira, 14 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell – educação a serviço da construção do enaltecimento ao regime; Júlia pouco se importa com a doutrinação e autoria dos “grandes feitos” celebrados pelo Partido; comprovando a eficácia da adulteração do passado; Winston começou a falar a respeito de Jones, Aaronson e Rutherford e do fragmento que comprovava a fraude do regime contra eles; o passado apenas podia ser encontrado em certos objetos como os da loja de Charrington; o “presente sem-fim” instituído pelo Partido e as muitas alterações e falsificações materiais


Evidentemente não se pode dizer que Júlia fosse completamente avessa a toda doutrina do Partido... Como vimos, para ela o predomínio do IngSoc sempre ocorreu e permaneceria indefinidamente. O aprendizado que teve na escola foi marcado pela transmissão de informações que enalteciam o regime e suas conquistas nos campos político, social, cultural, científico e tecnológico. Não era por acaso que acreditava que o avião havia sido inventado pelo Partido.
Winston disse-lhe que havia frequentado a escola básica nos anos anteriores a 1960 e por aquele tempo havia aprendido que o Partido havia “inventado o helicóptero”, esclareceu que durante as aulas não se falava da tecnologia dominada pelo regime em relação à sua capacidade de fabricar aviões... Isso o levou a concluir que, conforme o tempo passava, o pessoal encarregado da educação dos jovens determinava mudanças no currículo para satisfazer necessidades ideológicas de momento. Assim foi com a geração de Júlia, doze anos mais jovem do que a sua, e certamente ocorria com as mais novas, que seriam bombardeadas com informações sobre outras impressionantes conquistas do regime.
Ele explicou à moça que o avião já existia bem antes da própria Revolução que levou o IngSoc ao poder extremado... Mas ela deu de ombros, mostrando que não via qualquer importância em se saber qual a origem da máquina ou quem a inventou. Sua reação causou estranhamento ao Winston, que ficou ainda mais pasmado ao ouvi-la dizer que não tinha conhecimento da guerra que a Oceania travara com a Lestásia quatro anos antes, época em que esteve em paz com a Eurásia.
Júlia simplesmente parecia não ter notado que os canais de comunicação a partir das teletelas alteraram o curso dos acontecimentos e, com isso, o inimigo do país. Questionada a respeito, respondeu que pensava que sempre estiveram em guerra contra a Eurásia.
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Winston assustou-se com as palavras da namorada porque elas eram uma mostra da eficácia do trabalho realizado pelo Ministério da Verdade... É claro que os aviões tinham sido inventados bem antes do nascimento dela, e seu aprendizado escolar se dera quando ela era ainda uma criança... Mas o que dizer a respeito da “reviravolta da guerra”, ocorrida há apenas quatro anos, “quando já era adulta”?
Inconformado, falou-lhe a respeito e apresentou-lhe alguns argumentos até que ela conseguiu lembrar-se um pouco a respeito dos entreveros bélicos da Oceania com a Lestásia. Apesar disso, também não viu grande importância no detalhe e, sem muita paciência, quis saber se aquilo tinha mesmo alguma relevância. Para ela, a persistência dos conflitos é que era errado. O que podiam fazer se os noticiários eram sempre mentirosos?
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Houve ocasiões em que Winston falou-lhe a respeito de seu trabalho no Departamento de Registro e as falsificações que tinha de processar. Esperava que a garota se indignasse com as manobras do Partido para estabelecer a “verdade única e oficial”, mas nem o fato de saber que “transformavam mentiras em verdades” a horrorizou.
Ele falou também a respeito de Jones, Aaronson e Rutherford... Contou-lhe a respeito do recorte que lhe chegara às mãos e que comprovava a fraude contra eles. Todavia também isso não a sensibilizou... A rigor, ela não entendeu o caso e perguntou se os tipos eram seus amigos. Winston explicou que os conhecia apenas de vista, pois eram mais velhos do que ele e pertenciam ao Partido Interno... A militância deles datava de antes da Revolução, portanto eram tipos que “pertenciam ao passado”.
Júlia quis entender por que ele se preocupava com o que havia se sucedido aos três... Argumentou que pessoas eram executadas pelo regime ininterruptamente. Ele disse que não era apenas o caso de terem sido assassinados, já que o papel provava que o Partido aboliu o que havia de fato ocorrido. A manipulação modificou o passado... Talvez se pudesse dizer que o objetivo fosse mesmo o de eliminar o passado, que só podia ser encontrado em certos objetos da loja de Charrington, sem quaisquer referências textuais a eles relacionadas, como era o caso do peso de vidro.
Ainda tentando explicar a situação, Winston disse à Júlia que as pessoas pouco ou nada sabiam a respeito da Revolução ou do período anterior a ela porque os registros haviam sido destruídos ou falsificados... Os livros foram reescritos, “os quadros repintados, toda estátua, rua e edifício rebatizado, toda data alterada”.
Ele quis mostrar que a situação era das mais dramáticas e acrescentou que diariamente, “minuto a minuto”, se processavam alterações. A História não mais existia, pois o Partido instituíra uma espécie de “presente sem-fim” que evidenciava que “o regime sempre tem razão”. Seu drama concentrava-se no fato de saber que o passado vinha sendo falsificado, mas, apesar de trabalhar na falsificação, e de ser um dos autores das retificações, ele mesmo não tinha condições de provar as fraudes.
Amargurado, explicou à Júlia que assim que terminava o serviço não sobrava qualquer prova... Apenas em sua consciência habitava certeza a respeito da mentira que ajudara a construir.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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