sábado, 4 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell – perfume idêntico ao da decadente prostituta da área próxima à estação; velha cama de casal com velho colchão infestado de percevejo e cobertores puídos; tranquilo descanso dos amantes, experiência inusitada para o casal; Júlia avista uma ratazana no quarto, atira-lhe um sapato e comenta a respeito da infestação de ratos na cidade; Winston manifesta ter pavor dos roedores


Winston abraçou sua garota e no mesmo instante sentiu a fragrância artificial dos cosméticos a lhe invadir as narinas... Lembrou-se da ocasião em que estivera nas proximidades da estação em visita à “cozinha de porão”, quando se envolveu com a prostituta decadente. Os cheiros eram idênticos, mas dessa vez ele não se importou. Apenas elogiou a maquiagem e proferiu breve exclamação a respeito do perfume...
Júlia confirmou que havia providenciado um frasco e garantiu que para o próximo encontro arranjaria “um vestido de verdade”. Além de “meias de seda e sapatos de salto”. Não sabia onde conseguiria, mas tinha certeza de que estava decidida a também não usar “as calças horrorosas” fornecidas pelo Partido.
Nos braços do namorado, manifestou que no quarto que haviam alugado pretendia “ser mulher, e não uma militante”. Na sequência, os dois jogaram as roupas para o lado e se estiraram sobre a cama... Winston lembrou que era a primeira vez que se despia em sua presença e que não estava se importando em exibir “o corpo pálido e magro, das varizes saltadas na barriga da perna e a mancha acima do tornozelo”.
(...)
A cama de mogno não tinha lençóis... O cobertor que a cobria era muito gasto e, além disso, o colchão também parecia velho demais. Júlia observou que devia estar cheio de percevejos, mas isso não tinha a menor importância. Camas de casal como aquela só podiam ser encontradas em casas proles.
Winston lembrou que durante a infância teria dormido algumas vezes numa daquelas... Júlia, ao contrário, jamais conhecera aquele tipo de mobília.
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Depois de se entregarem um ao outro, adormeceram... Eram quase nove horas da noite quando Winston despertou. Cuidou para não provocar movimentos bruscos, pois não queria acordar Júlia, que dormia com a cabeça apoiada em seu braço.
Boa parte da maquiagem borrou suas faces ou o travesseiro... Apesar disso, Júlia permanecia com o rosto levemente maquilado de ruge. Ele notou um pálido raio de sol passava pela janela e chegava à lareira onde estava a panela com água fervente.
Desde o pátio já não se ouvia a cantiga da mulher... Em vez disso, uma distante gritaria de crianças chegava-lhe aos ouvidos. Começou a pensar a respeito da acomodação e da oportunidade que estavam tendo e pôs-se a imaginar se no passado havia sido “normal” os casais aproveitarem as noites de verão, deitados nus em suas camas, sem se importarem com outra coisa além dos “ruídos pacíficos” que lhes chegassem desde o exterior ou com a vontade de se enlaçarem no momento que bem entendessem. Será que isso realmente havia sido possível em algum momento?
(...)
Júlia despertou de seu sono e olhou na direção do fogareiro... Comentou que metade da água havia evaporado e que logo que levantasse faria o café. Lembrou ao Winston que podiam permanecer por mais uma hora e perguntou-lhe a respeito do horário em que cortavam a energia elétrica de seu prédio.
A Mansão Vitória ficava totalmente sem luz às onze e meia da noite... Já na pensão onde ela morava cortavam a energia às onze em ponto. A moça falava a este respeito quando se assustou com um rato, e por isso interrompeu o que dizia. Com um grito de “vai-te embora, imundo!” tentou espantar o roedor. Como não obteve o resultado esperado, pegou um dos sapatos e o atirou na direção de um dos cantos do cômodo. Winston lembrou-se da ocasião em que ela atirara o pesado dicionário na tela onde aparecia a imagem de Goldstein durante os “Dois Minutos de Ódio”.
Mas a lembrança não o entreteve porque se tornou visivelmente preocupado com a reação da namorada, e mais ainda com a possibilidade de haver mesmo um rato por ali. Ele perguntou e Júlia confirmou que tinha visto o focinho do bicho num buraco do rodapé, e garantiu que pelo visto o havia assustado com o sapato. Winston soltou uma exclamação sem crer que existisse um rato no quarto... Todavia, Júlia explicou que a cidade estava infestada de ratazanas.
A moça voltou a deitar-se dando a entender que não estava nem um pouco preocupada com a presença de roedores no prédio onde funcionava a loja de antiguidades... Depois comentou que na cozinha da pensão onde morava também havia ratos, e que em alguns bairros existiam mais ratos do que gente. Sem qualquer rodeio, perguntou se ele sabia que alguns ratões atacavam crianças pequenas... A situação era grave, continuou, pois as mães não podiam deixar os filhos brincarem na rua sob o risco de serem atacadas pelos bichos assombrosos.
Para melhor explicar, Júlia caracterizou os roedores que atacavam criancinhas como “grandões, pardos, os piores”. Ia continuar falando a respeito das situações mais horríveis quando, inesperadamente, Winston a interrompeu ao implorar: “Chega!”.
Ela notou que ele mantinha os olhos fechados e que estava bem pálido... Perguntou se tinha tanto nojo assim de ratos. Então Winston respondeu que, para ele, não havia maior horror no mundo do que os ratos.
Júlia quis tranquilizá-lo, pois percebeu que se tratava de uma fobia traumática. Apertou-o contra si e envolveu suas pernas e braços com todo o calor de seu corpo... Não foi de um momento para outro que voltou a abrir os olhos.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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