quinta-feira, 16 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - ao que tudo indica, O’Brien conhecia o nome de Winston desde o processo contra Syme; convite para uma visita ao próprio apartamento para conhecer a “novíssima décima edição” do dicionário de “novilíngua”; Winston entende que o contato relacionava-se à conspiração da qual o membro do Partido Interno fazia parte; um ponto sem volta que certamente o levaria ao Ministério do Amor

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-mais-respeito-da.html antes de ler esta postagem:

Vimos que Winston foi abordado por O’Brien no mesmo corredor em que havia recebido o “recado” de Júlia pela primeira vez... O rapaz quase não conseguiu segurar a emoção e o medo ao reconhecê-lo, e entender que era a ele mesmo a quem o tipo do Partido Interno se dirigia.
Como vimos, O’Brien queria falar a respeito de um artigo de Winston publicado no “Times”. Ele tinha elogios para o interesse do autor em relação à “novilíngua”. Acanhado, Winston respondeu que se tratava de um amador e que jamais exercera qualquer interferência na construção do idioma.
O’Brien insistiu que a produção textual era das mais elegantes e, além disso, sabia que não era o único que pensava daquele modo. Esclareceu que há pouco tempo conversara com um “perito”, um tipo de quem sequer lembrava o nome, mas certamente uma pessoa próxima ao Winston... Este logo pensou que “perito e próximo a ele” só podia ser o Syme.
No mesmo instante seu coração voltou a bater aceleradamente, e tudo porque sabia que “Syme não estava apenas morto, mas fora abolido, era uma ‘impessoa’”. Sabia que era até arriscado falar a respeito dele ou referir-se ainda que indiretamente a ele. Winston entendeu que a citação de O’Brien só podia ser uma espécie de sinal, um “código”, e o fato de ter feito referência a um caso de “crimideia” os envolvia em certa cumplicidade.
(...)
Continuaram a caminhar pelo corredor até que O’Brien parou... Ajeitou os óculos e retomou o que dizia sobre o artigo de Winston. Observou que encontrara duas palavras que já haviam caído em desuso. Então quis saber se o rapaz já tinha visto a “Décima Edição do Dicionário de Novilíngua”. Como devemos saber, Syme havia dito ao Winston que estava trabalhando na décima primeira e definitiva edição do dicionário (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-finalizando.html).
Winston respondeu que não, pois até onde sabia ainda não tinha sido publicado... Acrescentou que no Departamento de Registro ainda usavam a nona edição. O’Brien observou que a décima edição seria lançada em alguns meses, mas havia algumas amostras e ele mesmo recebera uma. Depois perguntou se o rapaz gostaria de examiná-la.
Winston respondeu que estava muito interessado em conhecer a encadernação ainda inédita. Em seu íntimo, estava entendendo que a conversa tinha o objetivo indizível e se relacionava à sua visão sobre encontrarem-se em local “onde não haveria treva”. Obviamente não falou nada a respeito enquanto ouvia o tipo do Partido Interno dizer que a décima edição trazia “novidades engenhosas”, além de considerável redução de verbos. Por isso achava que ele gostaria de conhecer um pouco da novíssima obra.
Na sequência, O’Brien quis saber se Winston achava viável receber a amostra através de um mensageiro. Depois observou que ele era do tipo que se esquecia dos combinados, então sugeriu que seria melhor que Winston o visitasse para buscá-la em seu apartamento. Acrescentou que podia ir no horário que quisesse, e foi logo retirando um bloco de anotações e uma caneta de ouro dos bolsos para escrever seu endereço no papel que lhe entregaria.
(...)
Tudo isso se passou bem próximo a uma teletela, e Winston pensou sobre isso enquanto O’Brien anotava o endereço e o destacava do bloco para entregar-lhe. Na sequência o tipo esclareceu que era possível encontrá-lo em casa à noite e que, se não estivesse, sua empregada lhe entregaria o dicionário. Depois se afastou. Winston pegou o papel com a tranquilidade de quem sabia que não tinha a menor necessidade de camuflá-lo.
Apesar de se sentir seguro, fez questão de decorar as informações... Retornou ao trabalho e mais tarde eliminou as anotações de O’Brien pelo “buraco da memória” junto com outros fragmentos.
A conversa havia sido rápida, mas para Winston ela fazia parte da intenção subjetiva daquele importante membro do Partido Interno e, que por intuição, tinha convicção de que cedo ou tarde ocorreria... O brevíssimo encontro só se explicava na medida em que tinha servido para O’Brien passar-lhe o seu endereço. Essa conclusão mais se fortalecia porque sabia-se que era praticamente impossível descobrir o endereço de alguém, até porque não existiam cadastros ou guias de endereços abertos para consultas particulares.
Em outras palavras, Winston havia entendido a mensagem nesses termos: "Se queres me ver, podes me encontrar aqui". A partir daí, imaginou que talvez o outro lhe passasse alguma mensagem no exemplar do dicionário. E isso só podia significar que a tão sonhada conspiração contra o regime era de fato uma realidade e o havia alcançado.
Não tinha a menor dúvida de que iria ao encontro de O’Brien... Talvez se demorasse um pouco, pois sabia que não devia ter pressa e que tudo aquilo fazia parte de um processo mais antigo. Em suas reflexões ordenava os acontecimentos que o levara à condição bem mais comprometedora: primeiro havia pensado secretamente, depois iniciara o diário, e no momento sentia-se avançando para o estágio da ação. Certamente o fim de tudo aquilo teria palco no Ministério do Amor.
O fim de tudo já se concentrava no princípio de suas inquietações, mas chegara a um ponto sem retorno... Não tinha como não se apavorar com a possibilidade da morte, pois já se sentia “menos vivo”. Lembrou-se de que quando falou com O’Brien sentiu uma friagem percorrer o próprio corpo. Era como se pisasse “na terra úmida, e não era consolo algum saber que o túmulo lá estava, à sua espera”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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