Loredano, sabemos, entrou no quarto de Cecília... Seu projeto não desprezava a possibilidade de a menina gritar no meio da noite ao se perceber sequestrada... Como vimos, nesse caso, à sua ordem, o fogo e a lâmina entrariam em cena... Terminada a ação diabólica os “vinte demônios” seguiriam para o Rio de Janeiro.
Tudo se encaminhava muito bem para o italiano... Os familiares de d. Mariz dormiam “tranquilos e descuidados”.
Depois que a pequena ave se agitou, Loredano tirou roupas de seda e linho da cômoda de Cecília e fez um embrulho que contava transportar junto com sua preciosidade raptada... Depois abriu a portinha que dava passagem ao jardim. Notou que deveria pegar a menina e partir em disparada por aquele caminho... O silêncio era total e Loredano pôde notar um leve suspiro de Cecília... Ele se inclinou em direção ao leito, viu que a menina tinha uma cruz de esmalte entre os dedos... Ela sonhava... E o italiano pôde ouvi-la pronunciar o nome de Peri.
O bandido não tinha mais tempo para contemplações, então firmou o joelho e estendeu o braço... Mas a mão que já se aproximava de Cecília foi atingida por ligeira flecha que o pregou à parede. Loredano sentiu muito dor e ficou a se debater atrás da cama... Sua mudança involuntária de posição foi providencial, pois, não fosse isso, outra flecha disparada na sequência o atingiria em cheio na cabeça... É claro que Loredano soube no mesmo instante que havia sido atacado por Peri, e o seu ódio tornou-se imensurável... Mas ele estava em situação muito desfavorável... Com os dentes arrancou a seta que “anexava” a sua mão à parede, e saiu rapidamente pelo jardim como um desvairado.
Dois segundos depois, Peri descia de uma árvore para a ombreira da janela... Entrou no quarto de sua senhora e observou que ela estava salva e que ainda dormia o “sono da juventude e da inocência”... Àquela altura, Peri já havia matado os dois comparsas de Loredano (depois saberemos como), e desejava perseguir o italiano para eliminá-lo também... Mas decidiu organizar o quarto de Cecília, apagando a vela, cobrindo-a com a colcha de damasco azul (fez isso de olhos fechados para não “profanara beleza da menina”), reorganizando a roupa na cômoda, fechando a janela e limpando o sangue que havia sujado o chão e a parede.
Peri ficou satisfeito ao trazer a paz de volta ao quarto de sua senhora. Abaixou-se e beijou duas sandalinhas forradas de cetim como se fossem duas relíquias. Ali ele permaneceu até umas quatro da madrugada... Quando se retirou, fechou a porta, manteve a chave junto à cinta e decidiu aguardar junto à soleira. Então refletiu sobre o que havia se passado até então, lamentando-se e culpando-se pelo fato de Loredano ter avançado tanto.
(...)
Aconteceu que depois da conversa com Álvaro (que lhe garantiu que
Loredano, ao partir com d. Diogo, não mais incomodaria), Peri resolveu
percorrer as cercanias para detectar se havia alguma tribo guarani parente de
seu povo goitacá, que pudesse auxiliar d. Mariz e seus agregados no combate aos
aimoré, pois sabia que as forças do fidalgo eram diminutas perante a violência
que se abateria sobre o Paquequer.
À noite, Peri retornou à casa e voltou a falar com Álvaro, que lhe disse
que d. Antônio não havia dado crédito às acusações contra Soeiro e Simões...
Faltavam-lhes as provas... Mas como o velho confiava no índio, esperava tirar
conclusões mais apuradas depois de conversar com ele.
De certa forma, Peri se decepcionou com a
situação e concluiu que o melhor teria sido eliminar os dois capangas de
Loredano, mas os fidalgos não suspeitavam deles... Restava-lhe vigiar. E foi
isso o que fez, instalando-se à porta de sua cabana, decidido a permanecer sem
dormir durante toda a noite se preciso fosse...
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/09/o-guarani-de-jose-de-alencar-sobre-como.html
Leia: O guarani. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto