A noite chegou e, com ela, o silêncio... Os dois homens que faziam a vigilância notaram o vulto de d. Mariz ao longe... Ele estava finalizando a sua ronda... Logo ouviu-se o piar de uma coruja próximo à escada de pedra. Um dos que vigiavam abaixou-se e deixou que duas pequenas pedras caíssem de suas mãos... Depois disso, um vulto subiu a escada e chegou-se aos dois vigias perguntando-lhes se “tudo” estava pronto... Responderam que aguardavam por ele e depois rumaram para onde os demais repousavam... Ali notaram uma claridade que passava pela porta do aposento de Aires Gomes. Um dos três entrou no alpendre escuro, enquanto que os outros dois prosseguiram em direção ao fundo da casa.
(...)
O tipo que permaneceu entre os demais aventureiros era Bento Simões. Os
que prosseguiram eram Loredano e Rui Soeiro. Esses travaram um rápido diálogo
enquanto seguiam... Em síntese, Loredano (em breve saberemos como ele se livrou
da expedição ao Rio de Janeiro) quis saber como os companheiros haviam
encaminhado o plano que maquinaram pela manhã... E ficou sabendo que contavam
com vinte homens e que “restavam dezenove”... Possuíam uma senha (prata) e
tocariam fogo às instalações... Tudo estava arranjado para o momento exato...
Loredano encerrou a conversa perguntando se podia contar com a dedicação de
Soeiro... Um aperto de mãos selou o entendimento entre os dois... Então o
italiano passou a falar sobre o seu amor por Cecília, e ele garantiu que seu
sentimento era maior do que o seu interesse pelo tesouro que buscariam.
Obviamente Rui Soeiro ficou
espantado com aquela revelação. E mais ainda ao saber que o chefe pretendia
sequestrá-la (e até possui-la) ainda naquela noite... Loredano disse que se
morresse enquanto buscasse concretizar esse intento exigia que o comparsa
impedisse a qualquer outro obter o amor de Cecília... Soeiro deveria matá-la...
Sua insanidade atingiu tal degradação que exigiu que uma mesma cova abrigasse
os dois cadáveres.
O italiano exigiu que o capanga jurasse que cumpriria
aquele combinado... Soeiro, que estava bem assustado, jurou que realizaria os
desejos do chefe... Depois disso, Loredano providenciou uma estreita tábua e a
colocou sobre o despenhadeiro, garantindo o seu acesso à janela de Cecília. Ele
pediu ao comparsa que segurasse a tábua sobre a qual ele caminharia.
Rui manteve a tábua imóvel colocando-se sobre ela depois de acondiciona-la
no rochedo... Loredano desfez-se de suas armas para se tornar mais ágil e
seguiu com a faca nos dentes.
Abaixo dele estava o precipício com a mata úmida e
habitada por serpentes; na extremidade oposta estava a sua amada; para trás
deixou Soeiro. Antes combinou que o cúmplice deveria aguardá-lo do outro lado
assim que alcançasse a janela... O bandido, conhecendo o caráter vil de seus
cúmplices sabia que pela cabeça de Soeiro podia passar a tentação de se livrar
do chefe. Bastava tirar o pé do apoio e a tábua se soltaria...
Mas era verdade que o italiano exercia uma influência muito forte sobre
todos os seus aliados, e mesmo estando numa situação de total dependência, “impunha
respeito ao aventureiro”. Também devemos considerar que Soeiro apostava no
sucesso da empreitada até as minas de prata, e isso só poderia se concretizar
com a liderança de Loredano. Se a tábua rolasse abismo abaixo, e isso chegou a
passar pela sua cabeça, sua vida depravada prosseguiria sem maiores
perspectivas.
A improvisada pinguela sofreu alguns abalos, mas Loredano chegou ao seu
objetivo e, de lá, disse do modo mais abafado possível que o outro podia tirar
a tábua... Esse feito aumentou ainda mais a consideração de Rui pelo chefe... O
que ele não sabia é que o italiano havia se precavido em relação a possíveis
acidentes ou a uma provável traição do assistente... O
precavido Loredano providenciou antecipadamente uma corda passada por um caibro
do alpendre (ela permaneceu pendida a “uma braça de distância da janela de
Cecília”, mas a escuridão impedia vislumbrá-la)... Na verdade, após dar o
primeiro passo, o bandido alcançou a ponta da corda e a amarrou à cintura...
Mesmo que a tábua despencasse, ele não cairia no abismo... Mas nada disse ao
Rui... Seu intento era testá-lo.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/09/o-guarani-de-jose-de-alencar-loredano_21.html
Leia: O guarani. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto