Em
que pese o fato de haver entre os habitantes do Congo alguns missionários
portugueses letrados desde o final do século XV, não se conhece qualquer
documento escrito que relate fatos relacionados à posse de D. Afonso (outrora
Mbemba a Nzinga, filho do D. João Nzinga a Nkuwu).
Conforme salientado em postagem anterior, sabe-se que a transição se deu
através de confronto que trouxe à tona desavenças “até aquele momento mantidas
sob controle”. Como sabemos, as desavenças entre os africanos haviam sido
introduzidas desde que os portugueses iniciaram as conversões ao cristianismo e
o batismo de lideranças locais. Vimos que D. Afonso tornou-se árduo defensor do
catolicismo e liderou a repressão aos tradicionalistas seguidores de Mpangu a
Kitina.
Naturalmente havia muitas
diferenças entre o modo como os europeus concebiam o poder político e a visão
que os congoleses tinham a respeito da figura do manicongo que, para eles, era
investido de tal poder graças a prerrogativas religiosas e a rituais específicos.
Nenhum documento dos ocidentais registrou a posse do
D. Afonso do Congo no início de 1506... O autor de “Rei do Congo” lamenta e nos
leva a refletir sobre a “fusão do sagrado e do profano na constituição política
da autoridade” que se poderia verificar nas cerimônias “de entronização dos
chefes maiores do Congo”.
Ressalte-se que aquele que chegava ao posto de manicongo, mais do que
ter sido escolhido pela maioria das lideranças políticas provinciais,
comprometia-se em ritual religioso e simbólico de tal modo que passava a ser
respeitado como ente de poder político e de poderes sobrenaturais.
Conta Tinhorão que, na ocasião da posse, o Mani Vunda
(também chamado Nsaku ne Vunda), o maior de todos os sacerdotes e reconhecido
como “intermediário histórico entre o mundo dos mortos e seus descendentes
vivos”, passava (poderes) “ao novo chefe do Congo sob a forma de uma força
vital capaz de permitir-lhe a preparação da prosperidade e felicidade de seu
povo”.
(...)
Na postagem anterior vimos um pouco das origens (a partir de relatos
orais) da importância do Mani Vunda para os congoleses... O autor fundamenta a
sua ideia de ritual de “investidura” do Mbemba a Nzinga D. Afonso, e destaca a
atuação do líder religioso, na narrativa sobre Nitnu Wene (que teve de recorrer
ao “intermediador entre os vivos e os mortos” antes de efetivamente se tornar
líder político).
Também com base na tradição oral dos africanos, certo religioso que se
dedicou às atividades missionárias no Congo redigiu em 1623 um manuscrito com a
pretensão de registro da história da posse de Mbemba a Nzinga:
“(...) Tanto que o católico príncipe D. Afonso alcançou
tão milagrosa vitória (sobre seu irmão Mpanza a Nzinga em 1506) foi aclamado
por rei, com grande contentamento dos seus, e consolação espiritual e temporal
dos portugueses”.
Podemos dizer que o que se
afirma ter ocorrido na África do início do século XVI poderia perfeitamente
traduzir um episódio político de qualquer nação europeia... Tinhorão insiste
que o evento não deve ter sido tão simples como o padre missionário relatou no
chamado “manuscrito 8080 da Biblioteca Nacional de Lisboa”.
Obviamente
o autor do manuscrito estava acostumado à “tradição patriarcalista europeia”,
que determinava a elevação automática do primogênito do rei ao trono... Mas o
que ocorria na África era complexo e “resultava da escolha de algum dos chefes
de clãs das várias linhagens elegíveis, realizada por votação de um colegiado
de representantes provinciais em praça pública”.
Se a transmissão do poder ao D. Afonso do Congo se deu em um contexto de
divergências, seria o caso de refletir sobre o que de fato se deu... Para
Tinhorão, depois de ser reconhecido como vencedor da disputa com o irmão, o rei
cristão articulou um rápido entendimento com as lideranças tradicionalistas das
diversas famílias em nome de um consenso que possibilitasse a paz para governar
ao mesmo tempo em que se introduziria “certos modernismos cristãos sem confronto
total com as regras gerais da tradição local”.
Pelo visto foi isso mesmo o
que ocorreu... Em “O problema da eleição e coroação dos reis do Congo” (Revista
Portuguesa de História, Tomo XII, de 1949), do padre Antonio Brásio, admite-se
que os preceitos do cristianismo só foram adotados pela gente do Congo:
“como
fonte de ‘ngolo’, isto é, de poder. É apenas acrescentar um poder novo ao poder
antigo, sem que se possa falar de uma verdadeira renúncia a este”.
Continua em
https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/08/rei-do-congo-mentira-que-virou-folclore.html
Leia: Rei
do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto