quarta-feira, 29 de julho de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – a falta de documentos escritos sobre a posse do D. Afonso do Congo e as lacunas sobre o que de fato ocorria nas cerimônias; da participação do Mani Vunda e a transmissão de diferenciada força vital ao manicongo; o manuscrito 8080 e a “síntese simplista” sobre a posse de D. Afonso do Congo; padre Antonio Brásio e a ideia da adoção de preceitos do cristianismo pelos congoleses como “ngolo”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/07/rei-do-congo-mentira-que-virou-folclore_26.html antes de ler esta postagem:

Em que pese o fato de haver entre os habitantes do Congo alguns missionários portugueses letrados desde o final do século XV, não se conhece qualquer documento escrito que relate fatos relacionados à posse de D. Afonso (outrora Mbemba a Nzinga, filho do D. João Nzinga a Nkuwu).
Conforme salientado em postagem anterior, sabe-se que a transição se deu através de confronto que trouxe à tona desavenças “até aquele momento mantidas sob controle”. Como sabemos, as desavenças entre os africanos haviam sido introduzidas desde que os portugueses iniciaram as conversões ao cristianismo e o batismo de lideranças locais. Vimos que D. Afonso tornou-se árduo defensor do catolicismo e liderou a repressão aos tradicionalistas seguidores de Mpangu a Kitina.
(...)
Naturalmente havia muitas diferenças entre o modo como os europeus concebiam o poder político e a visão que os congoleses tinham a respeito da figura do manicongo que, para eles, era investido de tal poder graças a prerrogativas religiosas e a rituais específicos.
Nenhum documento dos ocidentais registrou a posse do D. Afonso do Congo no início de 1506... O autor de “Rei do Congo” lamenta e nos leva a refletir sobre a “fusão do sagrado e do profano na constituição política da autoridade” que se poderia verificar nas cerimônias “de entronização dos chefes maiores do Congo”.
Ressalte-se que aquele que chegava ao posto de manicongo, mais do que ter sido escolhido pela maioria das lideranças políticas provinciais, comprometia-se em ritual religioso e simbólico de tal modo que passava a ser respeitado como ente de poder político e de poderes sobrenaturais.
Conta Tinhorão que, na ocasião da posse, o Mani Vunda (também chamado Nsaku ne Vunda), o maior de todos os sacerdotes e reconhecido como “intermediário histórico entre o mundo dos mortos e seus descendentes vivos”, passava (poderes) “ao novo chefe do Congo sob a forma de uma força vital capaz de permitir-lhe a preparação da prosperidade e felicidade de seu povo”.
(...)
Na postagem anterior vimos um pouco das origens (a partir de relatos orais) da importância do Mani Vunda para os congoleses... O autor fundamenta a sua ideia de ritual de “investidura” do Mbemba a Nzinga D. Afonso, e destaca a atuação do líder religioso, na narrativa sobre Nitnu Wene (que teve de recorrer ao “intermediador entre os vivos e os mortos” antes de efetivamente se tornar líder político).
Também com base na tradição oral dos africanos, certo religioso que se dedicou às atividades missionárias no Congo redigiu em 1623 um manuscrito com a pretensão de registro da história da posse de Mbemba a Nzinga:

                   “(...) Tanto que o católico príncipe D. Afonso alcançou tão milagrosa vitória (sobre seu irmão Mpanza a Nzinga em 1506) foi aclamado por rei, com grande contentamento dos seus, e consolação espiritual e temporal dos portugueses”.

Podemos dizer que o que se afirma ter ocorrido na África do início do século XVI poderia perfeitamente traduzir um episódio político de qualquer nação europeia... Tinhorão insiste que o evento não deve ter sido tão simples como o padre missionário relatou no chamado “manuscrito 8080 da Biblioteca Nacional de Lisboa”.
Obviamente o autor do manuscrito estava acostumado à “tradição patriarcalista europeia”, que determinava a elevação automática do primogênito do rei ao trono... Mas o que ocorria na África era complexo e “resultava da escolha de algum dos chefes de clãs das várias linhagens elegíveis, realizada por votação de um colegiado de representantes provinciais em praça pública”.
Se a transmissão do poder ao D. Afonso do Congo se deu em um contexto de divergências, seria o caso de refletir sobre o que de fato se deu... Para Tinhorão, depois de ser reconhecido como vencedor da disputa com o irmão, o rei cristão articulou um rápido entendimento com as lideranças tradicionalistas das diversas famílias em nome de um consenso que possibilitasse a paz para governar ao mesmo tempo em que se introduziria “certos modernismos cristãos sem confronto total com as regras gerais da tradição local”.
Pelo visto foi isso mesmo o que ocorreu... Em “O problema da eleição e coroação dos reis do Congo” (Revista Portuguesa de História, Tomo XII, de 1949), do padre Antonio Brásio, admite-se que os preceitos do cristianismo só foram adotados pela gente do Congo:

                   “como fonte de ‘ngolo’, isto é, de poder. É apenas acrescentar um poder novo ao poder antigo, sem que se possa falar de uma verdadeira renúncia a este”.

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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