quarta-feira, 12 de agosto de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – dos ornamentos rituais tradicionais de uma possível cerimônia de posse do D. Afonso do Congo como “ntotila nitnu né Kongo”; informações sobre o “barrete alto como a mitra”; o colar “simba” e as informações de Antonio Brásio; sobre o bracelete “nlunga ou ma lunga” e a braçadeira “enullo”; um início de reinado marcado pela contradição


Mbemba a Nzinga, o D. Afonso do Congo chegou ao poder e pode-se dizer que ele representava a ideologia introduzida pelos portugueses na região... Apesar de não haverem registros documentais a respeito de sua posse, por tudo o que se salientou anteriormente, não se deve descartar a possibilidade de ele ter passado por uma investidura que contemplasse também os rituais tradicionais.
É bem verdade que as típicas assembleias provinciais, as discussões, escolha e deliberações a respeito do novo líder, no caso de Mbemba a Nzinga, deixaram de ser elementares devido à sua vitória na luta que ocorreu à época da morte de seu pai. Assim, Tinhorão apresenta detalhes que evidenciariam um cerimonial religioso no qual Mbemba a Nzinga teria sido figura central.
Como veremos, por conta de sua aliança com os cristãos portugueses, o soberano iniciou seu “mandato” com a marca da contradição.
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Trajes e adereços diversos eram utilizados para dar significado à posse do novo líder... A tradição desde Nitnu Wene era a de que aquele que chegava ao poder assumia a grande responsabilidade de chefiar as diversas famílias que faziam parte do Congo. Dizemos que Mbemba a Nzinga (o D. Afonso do Congo) passava a ser reconhecido pelos nativos como “ntotila nitnu né Kongo”, o chefe supremo do grande Congo. Seus conterrâneos assim o admitiam, já que sua investidura e legitimidade eram conferidas pelo “principal eleitor dos manis”, o mais importante dos sacerdotes, Ntinu Nsaku ne Vunda.
Devemos considerar que o cerimonial tenha ocorrido... E se é assim, de acordo com os registros de Rui de Pina e os do cronista João de Barros (“Ásia”, 1539; “capítulo IX do livro III, década I), o sacerdote colocou “um barrete alto como mitra” na cabeça do chefe político empossado. Rui de Pina havia recorrido aos manuscritos de Rui de Sousa (1492) para descrever o referido barrete como “uma carapuça ou gorra de pano branco, que é ornamentado em honra dos sacerdotes”.
A peça lembra o acessório utilizado pelo papa, cardeais e bispos da atualidade... O “gorro alto” entre os congoleses era chamado de “impud, ampu, impu, empua ou empud”. Os nomes variam de acordo com as fontes até o século XVII. O autor cita religiosos católicos que produziram parte dessa documentação: D. Frei Manuel Batista (bispo), André Cordeiro e J. Mertens (padres).
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Um segundo adereço exibido pelo manicongo era um colar conhecido como “simba”... A peça continha vários pingentes feitos de ferro e era grande a ponto de envolver o mani, passando por baixo de sua axila direita e pelas costas... De acordo com o padre Antonio Brásio em “O problema da eleição e coroação dos reis do Congo”, a simbologia que estava por trás do colar lembrava a submissão do soberano em relação ao seu povo:

                   “assim como a mulher, que tem filhos, os leva às costas – comportamento ao vivo africano -, assim ele não é rei senão pai, e que assim há de querer a seus vassalos como filhos, e os há de trazer sempre carregados, isto é, às costas”.

Além do “gorro branco alto” e do “grande colar com pingentes de ferro”, o mani que era investido de poder em cerimonial tradicional usava um bracelete de ferro “à altura do bíceps de seu braço esquerdo”. Este braço especificamente era chamado pelos congoleses de “koko di kikento”, algo como “braço da mulher”.
O bracelete era uma “nlunga ou ma lunga”, conforme os congoleses o chamavam, e indicava a “filiação a linhagem matrilinear do Congo”. Ainda de acordo com Tinhorão, com base nas informações de Antonio Brásio, o bracelete de ferro no mani indicava “a perenidade histórica do próprio Kongo riactari, o Congo de ferro”.
Outra peça utilizada durante o ritual de posse do mani era uma braçadeira colocada em seu braço direito... Chamavam-na “enullo” e era ornamentada com esmero. O padre Antonio Brásio não apresenta nenhuma informação a respeito dos significados da “fita” e sua utilização na cerimônia.
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Do que foi exposto anteriormente fica a reflexão a respeito da condição do d. Afonso, Mbemba a Nzinga. Certamente um manicongo que experimentou um conflito psicológico pessoal em relação à “posição espiritual, política e ideológica dividida” entre suas raízes e o cristianismo que adotou.
Era o início do século XVI... Para muitos, o d. Afonso, Mbemba a Nzinga, seria o despontar de “um inesperado e excêntrico personagem do Renascimento”, disposto “a ultrapassar a realidade do seu ancestralismo pela adesão às promessas de uma modernidade tentadoramente oferecida pelo europeu português”.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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